Louquética

Incontinência verbal

sábado, 23 de abril de 2011

Expressões da vida


Se há duas expressões que me intrigam, elas são: "estar de bem com a vida" e "eu era feliz e não sabia".
A primeira é uma verdade clara, porque estar de bem com a vida significa aceitar a própria vida, o que implica tomar consciência de que o mundo não está aqui para te agradar, que há dias cinzas e dias coloridos, mas as cores dependem do manejo criativo da realidade.
Estar de bem com a vida é acordar e verificar que a contabilidade da casa não está muito favorável, mas, mesmo com as dificuldades, despertar um sopro positivo que mostra que as restrições financeiras não impedem que possamos aproveitar outros recursos gratuitamente dados, seja o sol, seja o papo com o amigo, seja aquela música que você põe para tocar e ouve parcimoniosamente ou se contorcendo feito louco, dançando na sala.
Quem te disse que viver é fácil? mas se a gente é de mal com a vida, vai ter uma indisposição para viver, uma preguiça de resolver as questões que realmente interessam, vai jogar sobre o outro a responsabilidade de tomar conta de si, vai inventar lugares onde depositar fatores de felicidade, sendo, porém, que estes lugares sempre estarão acima das estrelas, sempre onde a mão não alcança.
Sem estar de bem com a vida, nenhuma conquista nossa pode ser vislumbrada, reconhecida, comemorada...
Eu que não de otimismos nem de auto-ajuda, reconheço que nosso humor determina muito sobre nosso bem-estar. E estar de bem com a vida é ver graça na vida, é ter a vida como uma graça, apesar de situações espinhosas.
Quando decidimos estar de bem com a vida, também decidimos não nos amarrar ao passado, recapitulando dores, fixando tristezas ou olhando para quem nos tomou algo que nos pertencia de fato ou por direito.
O que vejo é que vivemos do passado porque ele não sai de nós. E nisso não há nada de errado: somos o que somos por um ato processual, assim como não se chega aos 35 anos sem termos passado pelos vinte. E, engraçado, eu só considero que comecei a viver após meus 24 anos, porque foi ali que consegui meu primeiro emprego fixo. É que a questão de me manter, ou seja, manutenere, ter nas mãos, significa que sou dona de mim, que não estou na mão de outrem, manipulável como um fantoche...
E as mãos têm um significado todo especial para mim: reparo na forma como os homens ficam de mãos dadas comigo; reparo na intensidade do carinho das mãos masculinas em meus cabelos; adoro olhar as mãos e tenho o maior respeito e admiração pelos apertos de mãos.
Mas, sim, o passado nos constitui.
Estar de bem com a vida implica estar de bem consigo mesmo e eu que não sou hipócrita digo que dinheiro ajuda muito a ser feliz. Entretanto, paradoxalmente, tantas vezes somos felizes quase sem dinheiro algum, sem nenhum motivo concreto somos tão felizes quanto o maior bilionário da história.
Mas para quem vive de mal com a vida, nem o maior salário, nem estabilidade emocional, financeira, qualquer fator que seja, não ajuda a melhorar a vida - e a vida, meu irmão, é fardo pesado! se você não sabe parar um pouco e descansar do seus pesos, você está perdido.
"Eu era feliz e não sabia" é o cúmulo do nonsense: não tem sentido. Se você é feliz e não se dá conta da felicidade, com certeza você não é feliz, pois felicidade imperceptível, felicidade de que não se usufrui conscientemente, nunca foi felicidade.
Ignorar o que te faz feliz é sintoma grave, porque quem não sabe o que procura ignora tudo de bom que acha.
Ontem ele me ligou e me disse: "Faz 11 anos. Hoje faz onze anos que..." e completou a frase falando justamente de algo que eu fiz por amor a ele, onze anos atrás.
Amor, quando passa, deixa só a sensação de termos sido ridículos. E eu me senti ridícula, enquanto ele se sentia saudoso e lamentava: "Eu era feliz e não sabia".
Ele nunca foi feliz. Felicidade é um troço muito gostoso para você não perceber, não dá para ignorar a sensação boa e gostosa de estar feliz - se você preferir, imagine aí uma descarga de endorfina que durasse,assim, uns 5, 10, 15 dias?
Todo dia temos angústias. Todo dia, de alguma forma, conversamos com o passado, esse velho interlocutor que segue nossos passos, mas você sempre tem opção de ressemantizar as coisas.
Um dos entraves à minha boa relação coma vida era me privar de dizer o que eu queria dizer a certas pessoas. Agora só falta uma com quem acertar as coisas: também a vida nos mostra que o perdão pode ser uma mentira que nos faz mal.
Ser politicamente correta, ser cristã no sentido da prática do perdão pode ser altamente prejudicial à saúde psíquica: só me resolvo com o meu passado quando verbalizo sobre ele e, neste caso, preciso dizer meia dúzia de verdades a alguém a fim de expurgar a mágoa, porque para operar a morte simbólica do meu pai também foi preciso dizer a ele o que eu havia a dizer.
Ontem, estudando para o texto que construo para o Exame de Qualificação do doutorado vi as notas que Michel de Certeau faz sobre Freud e me reconheci justamente nas concepções dos três tempos do pai: o pai superestimado; o pai rejeitado e o pai substituído e o que Freud classificou como O romance familiar dos neuróticos.
Dentro dos meus estudos, o fato de António Lobo Antunes ser psicanalista influencia a constituição da narrativa que eu trabalho, mas, como sempre ocorre, não costumo escrever coisas sem ter certa vivência empírica sobre elas.
Aprendi, também, que se tenho problemas com A. e comento estes problemas com C., me desvio de solucionar a questão, já que eu deveria tratar diretamente com a pessoa referida - é assim que as pessoas falam mal das outras pelas costas, daí porque costumo insistir com os meus inimigos, insistir no confronto direto. Ora, se são meus inimigos, por que temer falar diretamente a mim aquilo que já é dito sobre mim aos outros?
Mas, bem: estou de bem com a vida!

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