Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Memória e esquecimento



"Todas as mudanças profundas na consciência, pela sua própria natureza, trazem consigo amnésias típicas. Desses esquecimentos, em circunstâncias históricas específicas, nascem as narrativas. Depois de passar por transformações emocionais e fisiológicas da puberdade, é impossível ‘lembrar’ a consciência da infância. Quantos milhares de dias transcorridos entre a primeira infância e o começo da idade adulta desaparecem para além de qualquer evocação direta! Como é estranho precisar da ajuda de alguém para saber que aquele bebê nu na fotografia amarelada, esparramado, todo feliz no tapete ou na caminha, é você! A fotografia, belo fruto da reprodução mecânica, é apenas o mais definitivo exemplar dentre um enorme acúmulo moderno de evidências documentais (certidões de nascimento, diários, fichas de anotações, cartas, registros médicos e similares) que registra uma certa continuidade aparente e, ao mesmo tempo, enfatiza a sua perda de memória. Desse estranhamento deriva um conceito de pessoa, de identidade (sim, você e aquele bebezinho são idênticos), a qual não pode ser ‘lembrada’, precisa ser narrada."
(Anderson, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman - São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.278)
Trabalho com memória e com esquecimento na narratividade da nação brasileira e da nação portuguesa, daí a minha escolha por este trecho de Benedict Anderson, porque as figurações da nacionalidade, nome exato que acompanha minha tese, são construções discursivas, narrativizadas. Mas a gestação da nação não difere muito das experiências pessoais da memória, da constituição biográfica de cada um de nós.
Adoro o livro que citei: acho que o trabalho da tradutora é imprescindível para dar este tom de leitura boa, de compreensão, de acesso ao texto. Poucos textos teóricos têm essa característica de ser agradável e compreensível, dispensando uns volteios enfadonhos que servem apenas para dizer a mesma coisa.
Mas, então, somos quem somos também por nossa memória e por nossos esquecimentos.
Às vezes dizemos a uma pessoa: “Eu nunca irei te esquecer”. E para a mulher, o esquecimento é algo que dialoga com os sentimentos.
Esquecer alguém, no vocabulário feminino, é anular esse alguém, subtrair seu significado para si, diminuir sua importância. Nem sempre isso é feito contra o outro, mas a favor de si: é uma maneira de cicatrizar amores não correspondidos, relações dolorosas, humilhações,superar perdas, escorregos morais...
E quando dizemos “Eu nunca irei te esquecer”, na verdade, queremos dizer que esta pessoa a quem se fala fará parte de nossa memória, estará presente enquanto lembrança. Acontece, porém, que até nossas lembranças mudam porque um mesmo fato, passado um certo tempo, pode ser interpretado de uma outra maneira. Isso independentemente de dados que venham a surgir e desabonem o sujeito a quem se dirige a proposição “Eu nunca irei te esquecer”.
A maturidade e o próprio humor diante das circunstâncias da vida levam a gente a mudar a perspectiva da memória. Assim, aquele fato que nos deixou orgulhosos num dado momento, num tempo posterior poderá ser motivo de vergonha; o grande amor vira decepção, os pais, nossos heróis, passam a ser vistos como algozes, aqueles inimigos passam a já nem serem assim, tão potentes quanto nós os pintávamos e, aqueles que são parecidos comigo, certamente olham para trás e dizem: “Como eu fui idiota!”.
Mas só podemos ver o que somos depois que deixamos de assim o ser, isto é, num tempo posterior cuja mudança assinalada em nós permita perceber o passado de outro modo.
Todo mundo tem passado. Uns têm uma relação melhor com ele, outros, vivem dele, uns tantos mais preferiam apagá-lo e não poucos vivem de exumar o passado das suas vivências pessoais, a questionar o passado do outro e a investigá-lo...eu me interesso pela nossa relação com o passado da nação, embora não o passado histórico por si só, mas a construção desse passado e a forma como a gente se relaciona com ele – nós, um país de memória curta que a todo momento tem que confrontar com as piadas auto-dirigidas de que “brasileiro não tem memória: tem uma vaga lembrança”.Temos uma memória bem manipulada e processos de esquecimento sempre sob manobra, deduzo eu, sem maiores aprofundamentos hipotéticos.
No plano pessoal, porém, acho que o esquecimento vem sem ser chamado (ah, quando você tenta esquecer, aí é que não esquece mesmo!). Quando você percebe, já era: os personagens forem apagados, a história já é outra e no livro de nossa vida ficam muitos capítulos suprimidos. E isso pode ocorrem sem o mínimo prejuízo da narrativa.

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