Louquética

Incontinência verbal

sábado, 30 de abril de 2011

Quando a vida dá trabalho


Não vou a festas para resolver os enigmas do mundo, nem à Micareta para obter respostas sobre grandes paradoxos, mas devo dizer que ao voltar da festa, não sei se na noite de ontem ou no começo da manhã de hoje - eu já disse que eu só considero que hoje é hoje quando amanhece, independentemente de passarmos da meia-noite. Verdade seja dita: odeio as burocracias cronológicas deste caso, então vou seguir meus parâmetros pessoais e considerar que foi na noite de ontem - reparei o quanto ele é um homem triste.
Não que ele estivesse aqui, não que ele houvesse ido comigo à festa, foi coisa de dois gestos e umas poucas palavras mesmo e eu vi, de uma maneira mais focalizada, talvez, que ele é um homem triste.
Eu deveria entender e acreditar no que ele me disse, mesmo sem acreditar em si mesmo:ele não era o mesmo.
Eu deveria saber que ter tudo, como ele teve, ser importante, como ele foi; viver as coisas que ele viveu; ter o amor que ele teve e todas as chances do mundo para fazer com que tudo isso durasse e se multiplicasse e, entretanto, perder tudo, deixaria marcas ou mudaria radicalmente tudo.
Parece O Caso do vestido, de Carlos Drummond de Andrade, com pequenas diferenças, pois que depois de suas tragédias pessoais nada foi refeito. Eu só não esperava é que ele fosse um homem triste - não triste desse jeito. A sorte é que ele não sabe.
Se bem que de vez em quando ele faça balanços e avaliações sobre a própria vida, jogue um pano em cima, siga e pense que está tudo bem, fingindo que está tudo bem...até tudo desmoronar.
Ele até me disse que estava com uns sintomas esquisitos, se sentido apático, sem ver graça nas coisas, sem usufruir do que o trabalho lhe dava, meio sem perspectivas de amanhã, de devir, cumprindo um dia de vida por vez, de modo a que a vida fosse passando.
E eu disse: "Você está sofrendo é de existência!" - e foi aí que eu vi que ele é dessas pessoas para as quais qualquer tristeza é depressão, qualquer angústia se cura com remédio, dessas pessoas que não devem ter a menor noção do que seja estar vivo, porque não há vida sem angústia e sem faltas, mesmo para aqueles que têm tudo material e simbolicamente. Como disse meu poeta Iderval Miranda:

todas as sementes do nada
e a sempre falta.


Mas ele é workaholic e isso resolve parte das coisas dele.
Quando o senso comum diz que no tempo de nossas avós não havia depressão porque todo mundo tinha uma trouxa de roupa para lavar, não está dizendo exatamente aquilo que está dizendo: está dizendo que é preciso ter atividade, é preciso mobilizar vários setores de nossa vida em favor do nosso bem estar.
Ter o que fazer não é condenar a mente ociosa à oficina do Diabo, não: quer dizer que todo mundo tem faltas e que existem coisas além da falta, que as faltas sempre existirão, mas que podemos ter nos nossos afazeres uma certa pulsão de vida.
Estar em atividade é estar vivo, pelo menos para poder lavar um monte de roupas, descarregar a energia vital do corpo numa atividade e não dar dedicação exclusiva à falta, não ceder totalmente o espaço da vida àquilo que não temos, embora não devamos ignorar a realidade dessas faltas e seu valor para nós.
Traduzam, pois, o senso comum e sua "falta do que fazer" como uma maneira de dizer que não se pode mesmo depositar todos os ovos numa única cesta - e eu gostaria tanto de dizer a uma amiga minha para que ela acordasse também, que visse que não se pode viver somente por e para uma única pessoa sem pagar um ônus fatal por isso.
Pois, ele é um homem triste e está sofrendo de existência - essa é a maior sorte dos ignorantes: não saber o que é existir, não pensar sobre nada, não ver nada, resolver seus conflitos internos com muita cerveja e umas páginas de O monge e o executivo ou qualquer coisa do gênero. Por acaso lembrei que minha referida amiga está resolvendo suas questões existenciais com a leitura de Por que os homens gostam de mulheres poderosas... é, o desespero tem várias faces e adora se aliar com a ignorância, numa aliança irrevogável.
Quando eu falo em ignorância não estou descartando o nível superior cursado pelos referidos personagens da vida real aqui lembrados, não é de escolaridade que eu falo, mas de ignorância e burrice mesmo, não é burrice de Q.I., esses negócios objetivos, não: é outra espécie de burrice para a qual nem escola nem remédio dão jeito.
Pois, bem, ele é workaholic e com seu vício no trabalho ele sempre fugiu de casa e da vida, o que ajuda até certo ponto, mas tem seu efeito colateral de pôr embaixo do tapete as causas dos sintomas dele, as questões realmente cruciais, que agora assolam de forma voraz. É que ele não entendeu bem o que seria ter o que fazer, se ocupar...aí se jogou no trabalho e agora que é a vida que anda dando trabalho, ele não sabe trabalhar a questão.

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