Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O ano da morte de José Saramago


É, me abalou saber que Saramago morreu.
Saber que o cara viveu muito e intensamente nestes seus 87 anos não diminui uma certa saudade literária que se desenha - apesar da imortalidade do cânone.
Da primeira vez em que li uma obra dele, comecei pela errada, aquela que para mim é a pior: Memorial do Convento.
Oh, negócio chato! Ali eu vi a preferência dele pelos nomes horríveis para os seus personagens: Blimunda. Olha que nome desgraçado!
E pior que tudo: achei tudo uma cópia descarada de Gabriel García Márquez, especialmente em Do amor e outros demônios.
Mas depois, O evangelho segundo Jesus Cristo: que livro bom! maravilhoso! a desconstrução total das razões da Bíblia Cristã Católica - o que prova os conhecimentos do autor, já que ele reescreve a bíblia nesta passagem.
Ver um Jose atormentado por ter deixado que outras crianças morressem (25, eu acho) e não feliz por ter salvado ao próprio filho, leva-nos a pensar sobre o egoísmo e o individualismo das ações humanas.
José vive este inferno interior.
A superioridade moral de Maria de Magdala e o sexo, Jesus e o sexo e a mulher que o liberta são partes da narrativa que também me encantam.
O questionamento do maniqueísmo através das personagens do Pastor, de Deus, das circularidades com o diabo, a demonização das mulheres pela patriarcalidade da Bíblia, tudo isso é fascinantemente presente na obra. Mas é para quem aguenta, não é para qualquer fundamentalista ou obsessivo-religioso.
O Ensaio sobre a cegueira foi o livro que eu li maravilhada - novo deslumbramento meu, diante da narrativa, da aporia que aparece, das pessoas descendo aos níveis da animalidade para salvaguardar sua existência, da mediocridade, da responsabilidade moral que recai sobre quem enxerga enquanto todos estão cegos...
E A Jangada de Pedra, que na verdade eu li antes do Ensaio sobre a cegueira.
Aqui a metáfora dos temores dos portugueses de que a Península se desloque na direção do Continente Africano, ou a constatação de que Portugal está solto, deslocado da União Européia, à deriva... mas o centro da narrativa com Joana Carda, Pedro Orce, José Anaiço,Joaquim Sassa, descreve coisas fantásticas, além da presença de um bando de estorninhos a acompanhar um personagem e do sexo do homem velho, da mulher que liberta o homem com o seu sexo, a grandeza do sexo, dos mistérios do sexo e da vida:
"o erro é só nosso, com este gosto de drama e tragédia, esta necessidade de coturno e gesto largo, maravilhamo-nos, por exemplo, diante de um parto, aquela azáfama de suspiros e gemidos, e gritos, o corpo que se abre como um figo maduro e lança para fora outro corpo, e isso é maravilha, sim senhor, mas não menor maravilha foi o que não pudemos ver, a ejaculação ardente dentro da mulher, a maratona mortífera, e depois a fabricação lentíssima de um ser por si próprio, é certo que com ajudas, esse que será, para não irmos mais longe, este que isto escreve, irremediavlemente ignorante do que lhe aconteceu e então e também, confesso-lo, não sabedor do que lhe acontece agora". (p.119)
E em todas as obras que li, uma referência a Fernando Pessoa - ora é no meio do diálogo de Deus, diabo e Jesus, que há a alternância da pessoa, do Pessoa, até outras situação assumidas desde o título, no livro que me devo a leitura: O ano da morte de Ricardo Reis, já que Ricardo reis é heterônimo de Pessoa.
Esta é minha paideuma, mas ao mesmo tempo é a minha maneira de depositar flores no túmulo de um escritor de que gosto.
E é mais um que vive no meu quarto, porque digo que quando literariamente convivi com um autor, durmo com ele...ah, isso não é necrofilia: palavras são coisas vivas.

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