Louquética

Incontinência verbal

domingo, 17 de outubro de 2010

Carta para C.


Desculpe-me por te submeter ao meu tempo e ao meu ritmo: é que tem que ser assim, bem lentamente.
Do outro amor, aquele que acabou e ao qual eu designo por Grande Amor da Minha Vida ficou em mim o medo,a parcimônia, um pouco de temor diante de qualquer possibilidade de felicidade.
Tenho os meus vícios e talvez a solidão seja um deles.
Talvez esse desprendimento com a vida, com este nada a me amarrar a lugar nenhum seja o meu maior bem e agora eu pense muito antes de me desfazer dele.
Eu pertenço a mim mesma - não sou de ninguém, sou responsável por mim, respondo por mim e o que isso traz de preocupações e trabalhos não subtrai a minha satisfação em ser livre.
Não concorra com o passado: eu tenho um passado e o passado passou, mas me fez ser como sou, quem eu sou.
Tenha calma!eu nunca tive boas experiências nesse ramo, foram sempre felicidades instantâneas de curtíssima duração, nunca experimentei a "sorte de um amor tranquilo", foram sempre turbulências, foram sempre poderes assimétricos na relação, sempre, sempre...
Eu me vejo em seus defeitos, mas não quero que sejamos iguais, aquieta-te com nossas diferenças, aceita a imprecisão das coisas e elas vão tomando forma por si mesmas. Não bastaria saber que eu penso em você todo tempo? não bastaria notar que sofremos dos mesmos males e das mesmas paixões? não te bastaria saber que entre nossas semelhanças e nossos contrastes, seguimos?
E pode ser que amanhã nem seja isso, nem nada disso. Mas, pelo menos até lá, sossega o teu ciúme.

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate! oh, não se mate,
reserve-se - e todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical,
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.

O amor no escuro, não, no claro
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém
ninguém sabe e ninguém saberá.
(Carlos Drummond Andrade:Não se mate)

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