Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Como não amar António?


Ontem fui ver a casa, Ana. Quer dizer, eu sabia que já não havia a casa mas insisti em ir a Campo de Ourique mesmo assim. Você sabe: a casa dos meus pais por trás da igreja, a vivendinha de dois andares em cujo jardim costumávamos brincar ajoelhados no trevo dos coelhos, perto da gaiola da rede ao fundo do quintal onde os olhos, as orelhas e os focinhos deles tremiam. Aliás quando me lembro da casa é sobretudo isso que recordo: uma silenciosa agitação de sombras na gaiola encostada ao muro sob a nespereira sáfara, pupilazinhas vermelhas, pálpebras que me espiam, que nos espiam, secretas, da infância.
Onde era a casa e a casa ao lado
(a do coronel de artilharia, aquele senhor muito alto amparado a uma bengala como um pedaço de vento que se esqueceu de soprar)
é um minimercado agora no qual as viúvas de Campo de Ourique compram sabão, detergentes, caramelos, dúzias de viúvas empurrando os seus carrinhos por veredas de fraldas e compotas, mas eu continuo a supor que a nossa casa existe de forma que entro no minimercado coloco a moeda de cinqüenta escudos na ranhura, separo por meu turno um carrinho dos carrinhos encaixados uns nos outros numa longa fila expectante e como se fosse também eu uma viúva
(os homens podem ser viúvas não é verdade Ana? principalmente os homens de minha idade assim grisalhos, assim calados, assim tão sem esperança como a chuva num pátio)
caminho por uma ruazinha de flocos de aveia, caramelos, iogurtes, do mesmo modo que caminhava dantes em peso pelos compartimentos da casa, através das ilhas de luz que a hora da sesta semeava nos tapetes.
Tão estranho não ter casa, Ana. Não nos vemos há tanto tempo, deixamos há tanto tempo de falar que você não sabe, não pode saber, onde moro: basta que lhe diga que para chegar a Campo de Ourique necessito de tomar três autocarros diferentes, deixando-me o último bastante longe da vivenda junto do cemitério e dos seus gladíolos tão brancos. Mas todos os domingos venho aqui. Preciso de voltar a casa mesmo que não exista a casa, mesmo que tenha de empurrar um carrinho pelos ladrilhos do minimercado e de comprar o orégão, a salva e os rebuçado de menta de que não preciso para que os empregados não entendam quem sou, para que não percebam o que venho fazer, para que não escutem o leve, teimoso, persistente, suave rumor do passado que me persegue e acompanha, para que não dêem fé dos coelhos na gaiola de rede a devorarem o trevo debaixo de um ramo de nespereira. Detestaria que dessem fé dos coelhos. Como detestaria que notassem o retrato dos meus pais acolá, no sítio de sempre, sobre um tampo de cômoda que se transformou numa pilha de garrafas, etiquetas de cerveja e concentrado de laranja.
Às vezes dá-me a sensação de que é isso e não o fiambre ou o leite ou os chocolates que as viúvas de Campo de Ourique transportam nos carrinhos metálicos, dá-me a sensação de serem fotografias, obectozinhos, casaquitos de lã, o relógio de ouro do meu avô na sua redoma de vidro, dá-me a sensação que pagam na caixa o meu passado, que o arrumam na despensa, que o gastam no inverno, que de certa maneira se alimentam do que fui, do que fomos: passeios de bicicleta até à Ajuda, noites de sexta-feira no cinema, sabor de bombons de tangerina, um morto enorme, de sapatos de verniz, no quarto lá de cima. Que estranhas estas viúvas, Ana: todas de negro, com um chapelito de véu na cabeça, caminhando em fila num trote miúdo, carregando em sacos de plástico o que me pertence, o que durante anos sem fim me pertenceu. Daqui, de onde lhe escrevo
(uma leitariazinha modesta perto da nossa casa com um televisor apagado em cima de latas de biscoitos)
olho o minimercado que a última delas abandona e sei que se entrar, se introduzir uma moeda de cinqüenta escudos na ranhura, separar um carrinho e me dirigir com ele para as avenidas de latas de molho de tomate e pão de forma, encontrarei dúzias e dúzias de coelhos mastigando, à falta de trevo, os desenhos do carpete, numa casa em que a ausência se multiplica nos compartimentos sem ninguém. A empregada da caixa, sem os ver, lê uma fotonovela encostada ao balcão.
E passarei por entre as prateleiras em busca de um odor que não há, apanharei o autocarro na paragem junto ao cemitério e regressarei ao apartamento em que moro a fim de terminar esta carta, a colocar no envelope, e permanecer a olhar a parede fronteira séculos a fio, como sem que você se desse conta olhava o seu perfil ao meu lado na tarde em que fomos ao teatro e eu quis dizer que gostava de si e nunca fui capaz.
(António Lobo Antunes: Uma carta para Campo de Ourique. IN: Livro de crônicas. Lisboa: Dom Quixote, 1998)
Nesta transcrição foram respeitadas a grafia e a forma como o texto é escrito e estruturado, com suas minúsculas e seus parênteses, com sua pontuação em supressão, ou ausente, ou trangressora das normas, como costuma acontecer em boa parte dos escritos de António Lobo Antunes.
Adorei conhecer esta crônica - que é conto, que é poema, que é qualquer coisa de classificação imprecisa, ora, e o que me importa?
Desta memória que deambula por um mercadinho como se este fosse ainda aquela sua casa da infância, tenho lá minhas identificações: acho que penso demais no que será de minha casa quando eu morrer, especialmente com a especulação imobiliária e o crescimento urbano da cidade em que moro, em paralelo ao estouro e às inconsequências da construção civil, que transforma tudo em prédio, em villages, em condomínios, nas gaiolas contemporâneas que todo mundo gosta.
Minha casa é minha memória e se por muito tempo falei dela com saudades, não foi por outro motivo senão porque gosto dela.
Minha outra identificação pessoal está na parte final do texto: isso de gostar de alguem e ser incapaz de dizer. Com o tempo, essa incapacidade se tornou também a incapacidade de perceber de quem eu gosto - coisa que eu julgo autopreservação, que eu devo esconder de mim mesma os sentimentos.
Acabam aí as identificações pessoais e começam as imensas admirações literárias: acho que toda vez que eu me deparo com um escritor desse quilate eu questiono a própria escrita e essas manias e egolatrias de hoje, em que qualquer rima cruzada é poema, em que qualquer palavra em desencaixe é um conto, é um livro, é literatura, embora, sim, há os hábeis e criativos que realmente podem tornar essas operações um bom texto, mas esses são exceções. Daí porque a vida em pseudônimo é mais segura: quando você olha um texto de Lobo Antunes, por exemplo, e olha um outro qualquer, ou um próprio, constata que, definitivamente não estamos diante de diferenças e de particularidades, mas do fato que aquele sim, é um escritor.
Acho este texto lindo.
Tem aí quem vai catar traços de autobiografia, devido à Ana ter existido e ter morrido, tem os traços biográficos da gente mesmo, que se identifica e se vê refletido em situações e referências, apesar de saber que isso é imposível...e tudo isso faz o texto ser lindo.
Tem as coisas totalmente fora de rota, as que não têm nada a ver com o texto, mas que nos vêm à cabeça, sabe-se lá porque, como a dor de uma amiga minha - dor que eu também já experimentei - porque percebeu que o homem com quem ela estava saindo queria apenas uma parceira sexual.
Não era uma dor qualquer, dessas que qualquer mulher entende de imediato nos tempos de hoje. Era, porém, uma dor explicável, porque ela sentia muito o fato dele não se interessar por ela, mas pelo sexo dela. Então, minha amiga incorporava essa subestima com tristeza e indignação, porque dormindo juntos, ele nunca quis conhecê-la, nunca deu uma chance de descobrir outras coisas nela, não permitiu que ela se apresentasse, não quis saber, nem conhecer nem discutir, nem perceber - coisas pelas quais todas nós já passamos.
E para se salvar e não sair olhando os próprios machucados, dizemos que "quem saiu perdendo foi ele" - cada um se defende como pode, mesmo que a defesa seja mentir para si mesmo.
Acho que talvez eu tenha lembrado dela porque admiro nessa escrita a postura do narrador masculino dizendo que "os homens tambem podem ser viúvas", porque o luto de amor vivido por uma mulher é algo muito próprio e dolorido. E a dor deste narrador é gradativamente reforçada: "principalmente os homens da minha idade assim grisalhos, assim calados, assim tão sem esperança como a chuva num pátio".
E depois de trilhado todo esse percurso narrativo, quando já nem há como voltar atrás, ele, o narrador, finalmente consegue dizer que gostava de Ana - como são abundantes as imagens da morte, a memória e morte, como tudo que ficou para trás no tempo, mas corporificado em lembranças, acredito que esta carta é para alguém que já morreu. Ou morreram as oportunidades de viver o que havia para viver.
Este é o meu António, a quem espero saber corresponder interpretativamente, porque ao escritor a gente sempre deve respeito e responsabilidade com aquilo que faz de sua obra. Não obstante, devo admitir: não é fácil. Como não é fácil dizer que eu gosto dele, daquele que não é ficção nem criatura de papel.

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