Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Os Remédios do Amor


Transcrevo abaixo passagens de um sermão do Padre António Vieira sobre Os remédios de Amor.
Prescrevo os mesmos remédios aos meus amigos enfermos e já apliquei tantos deles aos meus próprios ferimentos que bem sei que a receita é antiga, cheia de efeitos colaterais e de resultados lentos. Bem, um dia a dor passa!

Os remédios, pois, de amor mais poderosos e eficazes, que até agora tem descoberto a natureza, aprovado a experiência, e receitado a arte, são estes quatro: o tempo, a ausência, a ingratidão, e sobretudo, o melhorar de objeto. Todos temos nas palavras que tomei por tema; e tão expressos que não há mister comento: Cum dilexisset, eis aí o tempo: Suos qui erant in mundo, eis aí a ingratidão: Ut transeat, eis aí a ausência: Ex hoc mundo ad patrem, eis aí a melhoria do objeto. E como se aplicarem todos estes remédios à enfermidade, todos estes defensivos ao coração, e todos estes contrários ao amor do divino Amante, nem o tempo diminuiu, nem a ingratidão o esfriou, nem a ausência enfraqueceu, nem a melhoria do objeto mudou um ponto:
In finem vilext eos. Estas são as quatro partes do nosso discurso: vamos acreditando no amor e desacreditando dos remédios.
O primeiro remédio que dizíamos é o tempo. Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera? São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas, quer partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os Antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza, o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira; embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê o que não via; e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença, é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor? O mesmo amor é causa de não amar, de amar menos.
O segundo remédio de amor é a ausência. Muitas enfermidades se curam só com a mudança do ar: o amor com a da terra. É o amor como a Lua, que em havendo Terra em meio, vai-o eclipsando. À sepultura chamou David discretamente terra do esquecimento: Terra abbionis. E que terra há que não seja a terra do esquecimento, se vos passaste à outra terra? Se os mortos são tão esquecidos havendo tão pouca terra entre eles e os vivos; que podem esperar e que se pode esperar dos ausentes? Se quatro palmos de terra causam tais efeitos; tantas léguas, que farão? Em outros longes passando de tiro de seta, não chegam lá as forças do amor.
O terceiro remédio do amor é a ingratidão. Assim como os remédios mais eficazes são ordinariamente os mais violentos; assim a ingratidão é o remédio mais sensitivo do amor, e juntamente o mais efetivo. A virtude que lhe dá tamanha eficácia, se eu bem o considero, é ter este remédio da sua parte razão. Diminuir o amor o tempo, esfriar o amor a ausência, é sem ter razão de que todos se queixam; mas que a ingratidão mude o amor e o converta em aborrecimento, a mesma razão o aprova, o persuade, e parece que o manda. Que sentença mais justa, que privar do amor a um ingrato? O tempo é a natureza, a ausência pode ser força, a ingratidão, sempre é delito. Se ponderarmos os efeitos de cada um destes contrários, acharemos que a ingratidão é o mais forte. O tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo. De sorte que o amigo ser antigo, ou por estar ausente, não perde o merecimento de ser amado: se o deixamos de amar, não é culpa sua, é injustiça nossa; porém, se foi ingrato, não só ficou indigno do mais tíbio amor, mas merecedor de todo ódio.
Finalmente, o tempo e a ausência combatem o amor pela memória, a ingratidão pelo entendimento e pela vontade. E ferido o amor no cérebro, e ferido no coração, como pode viver?
É, pois o quarto e último remédio do amor, e com o qual ninguém deixou de sarar, o melhorar de objeto. Dizem que um amor com outro amor se paga, e mais certo é que um amor com outro se apaga. Assim, como dois contrários em grau intenso não podem estar juntos em um sujeito; assim no mesmo coração não podem caber dois amores; porque o amor que não é intenso, não é amor. Ora, grande coisa deve de ser o amor, pois sendo assim, que não bastam a encher um coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores. Daqui vem que se, se acaso se encontram e pleiteiam sobre o lugar, sempre fica a vitória pelo melhor objeto. É o amor entre os afetos, como a luz entre as qualidades. Comumente se diz que o maior contrário da luz são as trevas, e não é assim. O maior contrário de uma luz, é outra luz ainda maior. As estrelas no meio das trevas luzem, e resplandecem mais; mas em aparecendo o Sol, que é luz maior, desaparecem as estrelas.
(Fragmentos do Sermão do Mandato, do Padre Antônio Vieira)

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