Louquética

Incontinência verbal

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Receitas de Felicidade


Há uns doidos que ficam fazendo cálculos sobre quanto tempo de nossa vida nós passamos a dormir e outros que calculam o tempo que perdemos nas filas. Fazem isso convertendo as horas em dias e, depois, nos deixam assustados com seus diagnósticos de que passamos, em média, uns 10 anos dormindo ou uns 05 anos nas filas... Eu não sei esses valores, que são divulgados vez por outra nas estatísticas alarmantes, mas acho interessante essa preocupação.
Penso que se eu for calcular, até o presente momento, o tempo que gastei tomando banho, o tempo que gastei me deslocando até a padaria, o tempo que eu levei no supermercado, o tempo que eu gastei telefonando, o tempo em que eu dormi, o tempo em que eu fiquei me arrumando para sair, o tempo que eu usei para beber água, o tempo em que eu fiquei paparicando meus gatos, o tempo em que eu fiquei escolhendo roupas numa loja, bem, bastaria isso para que eu soubesse que eu tive pouco tempo de vida conscientemente vivida.
Mas, ontem, eu concluí que o que eu mais fiz nessa vida foi esperar. Acho que o fenômeno não é assim tão particularmente meu: todos nós esperamos pela morte, só para começar esse ranking. Não que a escolha seja voluntária, mas é uma espera.
Esperamos um grande amor, esperamos que o tempo mude e que a sorte chegue, esperamos que o tempo cure o que nos aflige, esperamos esquecer com o tempo, esperamos nossos amigos passarem em nossas casas, esperamos em filas, esperamos para a prova do concurso começar, esperamos resultados, esperamos pelo atendimento, esperamos para pagar a conta, esperamos vagas no estacionamento e esperamos tanto por tantas coisas que, se alguém aqui me viu misturar a espera com a esperança, não se enganou: olha, elas não são diferentes como parecem. A vida é mesmo uma longa espera – e pode ser a espera pelo que não virá, pelo messias que não virá, pelo grande amor que ficou para a próxima (se houver próxima vida), pelas coisas e pelas graças que nunca passarão de esperas. Isso é encantador: a espera, a realização e a frustração são, com suas dores, decepções, expectativas e satisfações, tudo que se pode levar de uma vida.
Não deixo de me surpreender com a incapacidade de meu pai em aceitar coisas assim. Meu pai não consegue superar uma angústia ou reconhecer como angústia aquilo que é só angústia. Falo dele hoje menos por questões de psicanálise, do que por estranhar que eu, sendo parte dessa geração que promove a medicamentalização da vida, isto é, faço parte de uma geração que tem medo de angústia, que acha que tristeza requer remédio e que é incapaz de lidar com as dores comuns da existência, aceite como normal as vicissitudes da angústia de existir, enquanto o meu pai, que cresceu em outra era, apele para os recursos da artificialização da dor e encare com pavor o que é próprio da existência.
Onde será que o meu pai guardou a angústia dele esse tempo todo? Como ele conseguiu fugir dela até aqui? Por que será que ela finalmente venceu? Por que ele se lamenta tanto, se sentindo injustiçado pela vida por sentir angústia? Que processo de alienação foi esse que se manteve por todo esse tempo? Afinal, onde ele estava enquanto a vida dele acontecia?
Acho que as literaturas de auto-ajuda, na verdade, funcionam como um curso rápido sobre como enfrentar a vida. As lições são óbvias, simplórias, previsíveis, fáceis e não tem nada ali que as pessoas já não saibam previamente. Porém, se essa literatura de que eu não gosto existe e vende muito, é porque ela dialoga com o seu tempo e encontra ouvidos que a ouçam.
De minhas brincadeiras de dizer que eu passaria a um amigo de confiança a minha vida para que ele a resolvesse, concluí que também isso não é algo meu: todo mundo de que sou contemporânea faz isso por outros meios: paga à babá para não viver as vicissitudes da maternidade; paga remédios para não ter que resolver seus problemas reais; paga a um e a outro profissional para que ele se encarregue de resolver a sua vida.
Entrei na análise em 2003 com a ilusão de que alguém ali, devidamente pago resolveria a minha vida. Resolveu, mas não foi o profissional: fui eu – que, aliás, não sou bem resolvida em tudo. Mas paguei a alguém que me ensinasse a cuidar melhor de minha vida.
Tem dias em que a vida é um saco. Os sofrimentos gratuitos são os aspectos que mais contribuem para isso. A falta de razão para certos sofrimentos deixam a gente indignada. Mas isso vai acontecer sempre.
No fundo os viventes se bipartem. Só há, na mais profunda generalização, a seguinte polarização: os que acham a vida linda, maravilhosa e um dom a ser preservado haja o que houver; e os que acham que a vida não presta. Os problemas destes últimos foram criados pelos primeiros, isto é, são os mega-otimistas que trazem suas versões de felicidade, de famílias felizes, de pessoas perfeitas e de vida magnânima, são eles que divulgam uma imagem de vida que não corresponde à realidade.
Os que acham que a vida não presta constatam que há insuficiências, faltas, perdas e lacunas em sua própria vida. Portanto, tendem a se sentir inaptos a atingir aquela felicidade dos otimistas.
Felicidade são lapsos, hiatos, pequenos eventos de duração maior ou menor, mas nunca constante e ininterrupta. O resto é angústia e vida mesmo. Não precisa muita filosofia e não precisa ter vergonha de ser feliz naquele momento em que comer um petit gateau dá um prazer incomensurável e a gente se sente medíocre ou bobo por uma felicidade tão simples.
Tive um sonho maravilhoso na noite de ontem para hoje. Alguém poderá dizer por que nunca falo dos pesadelos: é que raramente eles me pegam. Mas os sonhos bons me fazem feliz, me fazem querer dormir um pouco mais, me trazem realizações só possíveis ali e me dão alimento para que o dia seja melhor e para que o meu humor ajude meu dia a ser melhor.
Qualquer possibilidade de felicidade deve ser aproveitada. A felicidade artificial do paraíso artificial nunca me satisfaria – drogas, remédios e poções mágicas ou alcoólicas não funcionariam comigo. Aí Taty me diz que é porque felicidade é determinada geneticamente – sei lá. Seja como for, odeio as pessoas super-felizes: aquilo, com certeza, têm um pouco de fluoxetina...
A receita da felicidade quem pode dar é o psiquiatra: talvez um pouquinho de Prozac, uma Risperidona (se a vida te enlouquece), um benzodiazepínico, um maravilhoso Rivotril, coisas assim, simples e com tarja preta.
Quanto Valium a felicidade? - diria alguém mais louco que eu.
Outros loucos diriam: Rivotril: não vá para a cama sem ele!
Meus amigos amam todos esse medicamentos. Amam, assumem dependências, louvam, idolatram e, como eu já disse, até meu pai chama carinhosamente "Meu Lexotanzinho"! Ai, que fofo!
A receita da felicidade, na vida real, é pessoal e intransferível, não passa de mãe para filho, não tem ingredientes pré-definidos, não tem modo de preparo nem tempo certo para acontecer.
Já fui feliz com dinheiro e sem ele – embora, reconheço, melhor ser triste com dinheiro no bolso; já fui feliz apesar dos medos, já fui feliz com bobagens e com coisas incríveis que eu conquistei; já fui feliz sozinha e bem acompanhada e só posso dizer, como conselho a quem quiser aceitar, que sempre vale a pena abrir as portas para a felicidade. Se ela for embora logo, que pena. Se entrar e ficar mais um pouco, melhor ainda. Só acho que felicidade não entra onde não é chamada.

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