Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Antônio, meu canibal!


Antônio Torres é um escritor que eu admiro, gosto e me deslumbro, especialmente pelas obras Essa terra e Meu querido canibal - ambas extremamente diferentes uma da outra.
Meu querido canibal era meu objeto de pesquisa no doutorado.
Devido às demandas políticas internas do Programa de Pós-Graduação,em suas linhas de pesquisa, troquei de Antônio: Deixei meu querido Antônio Torres e contraí o matrimônio acadêmico com António Lobo Antunes - uma separação traumática, apesar de amar meus dois antônios.
Como é engraçado: a auto-referencialidade lá do Essa Terra traz o Totoin, que nordestinamente seria mais que um Totonho ou que um mal pronunciado Totoín - e eu pensei nos antônios todos: os mais esnobes: Tony; os cult: Tom; os simplórios: Tonho; os íntimos: Toinho.
Ontem foi o aniversário de Antônio Torres e houve um seminário comemorativo ao conjunto de sua obra.
Olhei para ele: 70 anos.
Olhei bem para mim mesma: eu, que não quero viver muito - eu, que temo tanto a existência e seus desdobramentos que canto o meu pavor pela possiblidade de vida eterna, mais eterna é a tortura imaginária por uma vida que nunca se acabe.
Olhei bem para ele e vi que ele deve achar que viver vale a pena, que valeu muito a pena até aqui.
Ele recebeu uma camisa do evento e disse: "Para mim, que disse que Literatura não dá camisa a ninguém, que bom exemplo em contrário" - e riu, e rimos todos nós.
O mestre de cerimônias, Professor Aleilton, frisou os prêmios e o status acadêmico de Antônio Torres, já membro da Academia de Letras e louvou a sua simplicidade.
Vi um homem feliz. Vi Antônio Torres como um homem realmente feliz - que, na verdade, é aquele que teve suas dores, suas angústias, conviveu com elas e hoje as coloca em seus devidos lugares - traduzindo: alcançou uma sabedoria no existir.
Meu querido canibal me encanta pelo rigor da pesquisa, pela construção de um narrador convincente mesmo quando opta por dizer que tudo o quanto ele afirma é presumível. A conquista do leitor já é notável nas primeiras palavras:
Era um índio. E era nos anos 500, do século das grandes navegações - e dos grandes índios.
Quando os brancos, os intrusos no paraíso, deram com os seus costados nestas paragens ignotas, não sabiam que eles existiam há 15 ou 20 mil anos e que eram mais de 5 milhões, dos quais pouco ou nada restaria para contar a história.
Como os índios não dominavam a escrita, deu destino sobre a terra esfumaçou-se em lendas. Se sabemos alguma coisa a respeito deles, é graças aos relatos daqueles mesmos brancos, quase sempre delirantes, pautados pelo exagero e eivados de suspeição, num desvario tresloucado de que não está imune o narrador que voc fala (herdeiro do sangue e fábulas de uns e de outros), ao recorrer às fontes d'antanho, os alfarrábios de um romantismo tardio, para postar-se, de peito aberto, como um extemporâneo neo-romântico exposto às flechadas da história oficial, essa velha dama mui digna, aqui sujeita aos retoques da nossa indignação." (TORRES, 2000, p.09).

Foi paixão à primeira leitura, em meu caso. E fui me afundando na tessitura desse passeio histórico-literário, em que o autor passa sem dever a nenhuma das partes (nem à Literatura, nem à História), mostrando outras faces do que repetimos e aprendemos pela repetição incauta da lição. Com Antônio Torres, é outra história:

"O índio se chamava Cunhambebe.
Comecemos pelo seu nome, que quer dizer “língua que corre rasteira”, em alusão ao seu jeito arrastado de falar, quase gaguejante. Simplificando isto: homem de fala mansa.
Não o imagine apenas um edênico bom selvagem – e nu, ainda por cima, sem nada a lhe cobrir as vergonhas etc. – senhor das selvas e das águas, da caça e da pesca, a viver na era da pedra lascada, em paz com os homens e com a natureza, um ser contemplativo debaixo de milhões de estrelas, e a mirar o céu para adivinhar sinais de tempestade.
Era um guerreiro. (TORRES, 2000, p. 11)

Antônio Torres destoa das versões oficiais, dos estereótipos, da deturpação dos lugares de memória do vencidos e oferece uma outra possibilidade de interpretar povos, épocas, etnias, relatos...
Estive em Niterói e olhei bem para cara da estátua de Araribóia, pensando, lógico na obra de Torres que já estava impregnada em mim.
Araribóia, grande traidor:
"Na Guerra do Cabo frio, os portugueses voltaram a contar com a ajuda de Araribóia - o da estátua em Niterói - , aliado de todas as batalhas" (p.60)
Fico para mim um grande débito moral do índio traidor, o senhor Araribóia,mas, enfim, louvados sejam os quase 12 anos de duração da firmeza da Confederação dos Tamoios, poeque é preciso mostrar que os índios reagiram à violência da Colonização portuguesa.
O que conta é ver o quão festejado foi o fato de que podíamos, ali, discutir a obra na frente do seu autor - fato tão frisado como recente, porque há bem pouco tempo só seria recomendável discutir os autores postumamente. E quem quer morrer para virar teoria?
Antônio Torres, sim, é um grande canibal, devorador de literaturas, de teorias, mandante antropofágico das "contra-versões" hegemônicas e, por isso mesmo ele é o meu querido canibal.
Ganhei um beijo no rosto, que este iluminado senhor me deu, em meio às comemorações do seu aniversário e me senti lisonjeada, flutuante, feliz em vê-lo feliz - e talvez seja que ele nem sonhasse em um dia ser recebido como é pelo mundo a fora, principalmente quando lemos o capítulo: Essa terra me enxota, a prenunciar seu deslocamento nas terras do Junco (Sátiro Dias) e sua errância diaspórica em outras terras, como o Rio de Janeiro, sua terra de morada.

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