Louquética

Incontinência verbal

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Últimas tendências


Se há uma coisa que todo mundo almeja numa elaboração teórica é a isenção.
Dizem que as Ciências Exatas são assim chamadas porque primam pela exatidão.
O jornalismo cotidiano, aquele que nos derramam as notícias como se fosse isento, preciso e sem tendências, também se quer imparcial.
Das Ciências em geral, o sentido da prova, isto é, sua passibilidade de se fazer crer por meio de experimentos e outros ajustes que lhes garanta comprovação, também quer ganhar o rotulinho de isento. Não é difícil: a gente só confia no que é cientificamente comprovado, no que é dermatologicamente testado e até o amor requer suas provas.
Cá estou eu ralando em minha tese e me emaranhando nesse negócio da isenção.
Veja: eu nunca mais quero falar em poesia porque me envolvi demais com minha dissertação e depois de um tempo, de tantas identidades, conheci outros poetas, em obra e em pessoa, que distorceram totalmente minha visão sobre o poeta e sobre a poesia - sei, andei em companhia de gente egoísta que celebra apenas sua dorzinha pessoal, é gente dissimulada disfarçada de sensível e cuja sensibilidade não ultrapassa a circunferência do próprio umbigo e nisso vai aí a experiência pessoal, essa loba que nos inclina às parcialdades do nosso juízo de valor. Esqueçamos, pois, estes meus poetas.
Eu, contudo, não consegui admitir que poetas eram pessoas como quaisquer outras e não os escolhidos, os profetas, os seres super e acima dos mortais que as concepções clássicas acabam imprimindo na gente - como pessoas iguais às outras, são falsa, são traiçoeiras, egoístas,boas, generosas, vaidosas, soberbas, amorosas, tendenciosas, gananciosas, deslumbradas, amigas,solidárias, enfim, tudo de bom e de ruim, como convém às pessoas em geral.
Agora, indo passear nas figurações da nacionalidade (tanto a portuguesa quanto a brasileira), privilegiei a portuguesa por ser esta a que eu menos conheço, a que demanda mais estudo.
Sou brasileira: por minha vivência e por minha formação, independente da leitura de Raízes do Brasil e dos livros de Roberto DaMatta, sei razoavelmente sobre a nacionalidade brasileira, cabendo o aprofundamento em seu momento certo.
Então, nem vou falar de Boaventura de Sousa Santos em sua Gramática do tempo, deixo esse para depois porque preciso revisar e ter certeza de que li corretamente e interpretei direito tudo o que li, mas indo a Eduardo Lourenço, esse famoso ensaísta e crítico português,em A nau de Ícaro, tanto mais me assusto com a parcialidade e com a repetição de um pensamento comum aos portugueses, no tocante ao orgulho de ter colonizado outros povos.
É lugar comum a defesa de que a colonização portuguesa em terras brasileiras foi "branda". Lógico, isso está lá em Sérgio Buarque de Hollanda,um brasileiro, ao defender caracteres do portugueses (aventureiro, semeador, etc., que a minha memória não é lá grande coisa) e isso será comum aos teóricos portugueses.
Então me vem o Eduardo Lourenço e ao tratar da Cultura portuguesa hoje, chora o fato de que os artistas portugueses não foram/são adequadamente reconhecidos pelo mundo, em seus papéis nos principais movimentos artístico-literários da história:
"Sem escapar a esse contexto ocidental que condiciona, de maneira direta ou ínvia, toda prática cultural, a situação da cultura portuguesa atual - tanto quanto é acessível a alguém já fora da pulsão inovante ou específica - apresenta uma textura singular. Ela é visível de fora para quem conhecia um pouco a nossa paisagem cultural antes de sua metamorfose nos últimos quinze anos. Mas também é sensível a quem a conhecia de dentro, não apenas a título histórico ou em função de uma mitologia reiterativa, que não faziam dela propriamente um deserto (coisa que nunca foi), mas um tempo cultural delicioso e monotonamente provinciano, de intermitentes sucessos ou clamores - quase só na área literária - logo sepultados numa espécie de frustração feliz. De resto, a glosa dessa frustração, atribuída à nossa marginalidade européia, agravada pelo pouco culturalista entusiasmo dos anos de paz doméstica salazarista - e até por Salazar lamentado, não sei se com refinada ironia -, foi um pouco o melancólico alimento da nossa cultura nessa época, já de si predisposta a melancolias. (p.13)
A ideía da localização periférica de Portugal na Europa, na Comunidade dos Estados Europeus é o que é usado como justificativa para que todas as colonizações empreendidas por Portugal tenham sido brandas, humanizadas, já que ele próprio era sub-colonizado pelas grandes potências, sobretudo a Inglaterra.
Note-se que o aspecto periférico alegado reflete na periferização da cultura portuguesa, não sendo ela, em si, inferior, mas subestimada pelos demais países.
Na parte seguinte, Portugal como cultura, Lourenço faz dos portugueses uns verdadeiros emigrantes planetários e aqui já nem sei se caberia afirmar Imigrante, Emigrante ou Migrante uma vez que o nomadismo português é evocado como a confirmar o empreendedorismo, a luta, a garra portuguesa em se arriscar em outras terras. Tudo isso rotulado como sendo parte da vocação lírica de Portugal.
Além da mitologia da saudade e da melancolia por seus tempos de glórias e conquistas, Eduardo Lourenço diz que Portugal sustenta uma dor mansa.
Não nego: aqui achei lindo o qualificativo.
Ter uma dor mansa é ter uma dor que é dor de vida: da existência difícil, das incompletudes, das faltas, dos desejos não concretizados, das frustrações - é uma dor de vida: aquela que faz parte, aquela que todo mundo tem, dor que redundantemente dói, dor que vai doer até à morte, mas nunca será causa mortis. Achei lindo ele dizer isso!
Talvez por ver em mim essa dor também - aquela que não me impede de ser feliz, de tocar a vida, mas que me dá o sentido de que eu não tenho como viver sem passar pela dor: dor mansa.
Eduardo Lourenço não nega ser Portugal "o país das lágrimas", de Camões a Pessoa, de Garret a Camilo Castelo Branco...
No capítulo A nau de Ícaro ou o fim da emigração, Eduardo Lourenço aperta minhas feridas de pessoa colonizada, trazendo um grande paradoxo da cultura portuguesa - em que faço uma pausa para explicar que esse Ícaro, aliás, essa nau de Ícaro é a retomada do mito clássico para dizer que assim como Ícaro paga caro pelo seu destempero e ousadia de voar na direção do sol e ter a cera que sustentava suas asas derretidas pelo calor, ocasionando sua queda, também Portugal paga caro por ter ousado lançar suas naus nos "mares nunca d'antes navegados", também chorados por Pessoa, quando diz "Ó, mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal" e tudo aquilo que está contido lá em Mensagem. Então: "Para acabar como Ícaro no meio da indiferença dos deuses e dos homens, punido por ter cumprido, em seu nome e em nome dos outros, um sonho para além de suas possibilidades?" (p.45)
Isso de se dizer um povo expatriado e sofrido, desconsiderando os sofrimentos causados a nós, o povo brasileiro, ao povo da Goa de outrora e do Continente Africano infinitamente explorado, dentre os incontáveis número de etnias destruídas por Portugal em sua sede de poder, em sua gana imperialista, me causa perplexidade e desconforto.
Vou mesmo dizer à minha orientadora, mais uma vez, que não consigo ser imparcial: é muito difícil de engolir. Ainda mais quando os teóricos são explicitamente tendenciosos.
"Desde há séculos, entre as duas margens do Atlântico, as saudades portuguesa e brasileira ligam, em tons diferentes, um laço distendido, mas jamais verdadeiramente quebrado. Como a nossa emigração foi sobretudo brasileira, isso importa mais do que tudo para a imagem que os portugueses têm de si próprios." (.p.48)
Afirmação do teórico português que adiante vai ser reforçada pelo louvor à imposição da língua portuguesa ao nosso país.
Portugal esboça um Orgulho de ter colonizado outras terra e um ideal de posse de que Angola e Moçambique, assim como o Brasil, são exemplos naquilo que herdaram de destruição e desorganização política, graças, mais uma vez aos empreendimentos portugueses nestas terras, ao seu poder bélico, à sua desumanidade que uns louvam como se fosse ousadia ou um festejado e justificável mal necessário.
Definitivamente, preciso me entender com os parâmetros científicos da minha tese.
Preciso rever a imparcialidade, porque está muito difícil de engolir tudo isso, de processar e, pior, de dar outras interpretações senão estas que aqui apresento.
Essas argumentações de Eduardo Lourenço vão se reforçando mais ainda ao longo do livro - e eu reforçando minhas tendências a contestar o ponto de vista dos herdeiros culturais dos colonizadores.
Dizem que uma tese é um parto. Mas, meu Deus, quantas contrações eu irei suportar mais?

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