Louquética

Incontinência verbal

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Quando ela se foi


Hoje ela morreu.
Eu estava aqui, em Xique-Xique, no meio da Semana de Letras, cuidando das coisas inerentes ao evento, me ocupando com assinaturas, com apresentações, com a alegria de reencontrar uma grande amiga, Meire, nossa convidada, e então meu tio disse que nossa mais antiga vizinha morreu.
Doeu em mim não ter tido a pressa em ir saber do estado em que ela se encontrava logo que eu soube que ela foi internada - é que era véspera de viajar para tão longe e eu , na verdade, nunca levei a sério a idéia de que ela pudesse morrer.
Há dessas pessoas que mesmo não estabelecendo carinhos explícitos conosco, sabemos que temos amor por elas.
Dona Nicinha sabia de toda a vida da minha família.
A seu modo, era nossa confidente e mediadora.
Crente ferrenha, às vezes de cara dura, mas sempre nossa amiga, sempre diminuindo a extensão da ponte entre os membros da minha família, fosse ela uma ponte geográfica ou uma ponte que separasse as imensas distâncias emocionais.
Ela era parte da paisagem da minha casa - se eu saía para correr no fim da tarde, tinha certeza de dar boa-tarde ou boa-noite à Dona Nicinha: ela estaria lá, levando o cachorro para andar na frente de casa.
Também tinha isso: nossa paixão pelos bichos e nossa solidariedade com todos eles, especialmente os gatos e os cachorros - coisa sabida pela rua toda, sempre a discretamente colocar uns bichinhos desamparados ou doentes na nossa porta, na certeza de que estariam em boas mãos.
Eu gosto tanto da minha casa e esse amor não é segredo, é coisa explícita, mas a minha casa não existe no ar, ela estabelece essas relações do seu contexto: ela é a casa naquela rua, com aquele quintal, com aquela frente, com aqueles vizinhos, com aquele tipo de calçamento, com aquela ladeira, com os hábitos que a gente acompanha, como a luz do poste que acende às 16 horas no inverno ou os barulhos e rotinas imperativos de segunda sexta, como os domingo nada silenciosos em meio àquelas três igrejas, das quais uma é a mais ruidosa.
Agora, a rua sem Dona Nicinha. E a casa?
Estou realmente guardando as lágrimas,se é que consigo fazer isso, mas sou teimosa,vou tentando.
Sinto saudades dela - e estou sem poder estar com Raquel, com Susana, com Abraham,neste momento difícil e de dor - a minha dor está bem longe deles, talvez perto pela intersecção do sentimento de perda.
Mas, que impotência absurda que temos diante da morte - essa certeza definitiva de que não há nada a fazer.
Dizemos que para tudo tem um jeito, menos para a Morte.Isso é só um entre tantos ditados, usados para nos dar força para reagir e procurar soluções para nossos impasses. Transposto para a realidade, para o sentido literal, o atestado de nossa finitude é também a confirmação de nossa plena impossibilidade de reagir à Morte.
Não tem jeito.
Pior: não sei como será voltar para casa e ela não estar lá - eu, que sou tão inabilidosa com faltas, impaciente com as ausências todas.
A saudade que em mim se desenha é essa saudade que sabe que nunca será contemplada. Dona Nicinha que eu conhecia desde que eu era criança, que falta!

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