Louquética

Incontinência verbal

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Palavras líquidas


Ultimamente fui compelida a voltar à minha dissertação de mestrado: mero acaso porque vou falar sobre ela na UEFS, no módulo VII, no próximo dia 02 de outubro e fora isso, meu ex-orientador e eterno amigo me cobrou as revisões e formatações para a edição do livro daquilo lá que eu escrevi.
Fui aprovada com nota máxima, mas isso não impediu que eu tivesse um bloqueio posterior com a dissertação - aleluia, senhor, por ter sido posterior! Vai que eu travasse e não conseguisse concluir?
E foi por causa de aspectos da dissertação que se reforçaram por questões pessoais que eu acabei com o Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (Zahar, 2004), nas mãos.
Zygmunt Bauman tem vários títulos que trazem o caráter líquido como adjetivo principal - Tempos líquidos; Modernidade líquida... mas, bem, eu falei da solidão durante o mestrado. O título de Bauman veio mesmo a calhar:
"A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, é o que este livro busca esclarecer, registrar, apreender" (p.08)
Serve tanto para as teorizaçõe acadêmicas quanto para nossa vida prática, vivida e dolorida de todo dia.
O livro não se volta apenas para o amor entre os casais, mas sobre a totalidade das relações humanas.
O autor de que tratei, Iderval Miranda, traz sujeitos poéticos totalmente misantropos. Por várias vezes eu tenho atos de misantropia, acho tudo um saco, acho ridículo ganhar beijos no rosto de gente que eu sei que me odeia e, a esse propósito, até o dia de hoje eu nunca errei sobre as pessoas que me odeiam. Percebo facilmente - algumas, coitadas, não sabem porque não gostam de mim, apenas não gostam, mas ficam se culpando, tentando engatar uma empatia que não há, lutando contra o óbvio e contra o inevitável. Esses aí, tipo JB, por exemplo, talvez não saibam que não gostar de uma pessoa não implicar fazer coisas contra ela. Os que eu odeio, odeio com justa causa. Se as causas não existissem, eu não faria mal algum a eles - como aliás, não costumo fazer.
Quando a vida da gente está boa ou quando a gente tem coisa mais importante para fazer ou para viver, para quê que vamos nos ocupar com quem a gente odeia, mas mantém a devida distância? muitos desses a distância afetiva é tão grande quanto a geográfica. Um dia tudo passa, o contrato acaba e aí você nem vai se lembrar da "pessoinha" desagradável.
Diz Bauman:
"O principal herói deste livro é o relacionamento humano. Seus personagens centrais são homens e mulheres, nossos contemporâneos, desesperados por terem sido abandonados aos seus próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela segurança do convívio e pela mão amiga com que possam contar num momento de aflição, desesperados por "relacionar-se". E no entanto desconfiados da condição de estar ligado "permanentemente", para não dizer eternamente, pois temem que tal condição possa trazer encargos e tensões que eles não se consideram aptos nem dispostos a suportar, e que podem limitar severamente a liberdade de que necessitam para - sim, seu palpite está certo - relacionar-se...
Em nosso mundo de furiosa "individualização", os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro." (p.15)
Como pessoa de minha época, vivo as coisas de minha época, não consigo passar incólume a muitas coisas dentre estas elencadas por Bauman.
Ele consegue reparar, por exemplo, no profundo egoísmo subjacente à decisão de ter um filho: "Esta é uma época em que um filho é, acima de tudo, um objeto de consumo emocional" (p.59).
Poxa, é exatamente o que eu penso.
Sob minha decisão de não ter filhos está a minha clara certeza de que não quero e pronto! mas para muitas pessoas o filho é mesmo um objeto de consumo emocional: é ter para quem deixar algo; é ter quem possivelmente cuide de você na doença e na velhice; é investir para um retorno futuro...isso, para mim, não é amor. É uma relação capitalista e viciante, calcada na cultura, em introjeções do que a gente vai aprendendo em sociedade. Olha o transcurso histórico que Bauman faz:
"Houve uma época (das fortunas de família passadas de geração para geração, segundo a árvore genealógica, e da posição social hereditária) em que os filhos eram pontes entre a mortalidade e a imortalidade, entre uma vida individual abominavelmente curta e a infinita (esperava-se)duração da família. Morrer sem filhos significava nunca ter construído uma ponte como essa (...)" (p.58)
E a seguir trata do nossos tempo:
"Objetos de consumo servem a necessidades, desejos ou impulsos do consumidor. Assim também os filhos. Eles não são desejados pelas alegrias do prazer paternal ou maternal que se espera que proporcionem - alegrias de uma espécie que nenhum objeto de consumo, por mais engenhoso e sofisticado que seja, pode proporcionar." (p.59)
Mas, em resumo, esta nossa maneira descartável de tratar os relacionamentos, de tratar as pessoas, de constituir laços frouxos que garanta um descartar rápido, tudo isso é tratado no livro.
É um percurso longo!
Tem coisas que para mim são isuportáveis, impraticáveis no convívio social - é preciso ter muito estômago para se derreter em risos, em intimidades, em beijinhos e saudações com quem a gente não gosta.
Mas, no que se refere a amor, lá vou eu: morrendo de medo.
Medo do apego, medo de ser traída, medo de que não dure, medo de que eu me tranque numa gaiola, medo do ciúme dele que desde já acena para mim, medo do ciúme futuro que eu possa ter, medo de me sentir insegura (mais insegura), medo de imaginar coisas, medo de que a vida confirme meus medos imaginários...
Quando eu falo que tenho os pés no chão (os quatro pés), é verdade. O que mais pode acontecer é que eu duvide que alguém corresponda àquilo que que sinto, ma so contrário, nunc ame ocorreu também.
A vida tem umas pistas certas e eu até ouvi isso daquela que eu descartei: "Quem quer, vai atrás".
Pois é: se a pessoa está a fim de você, pode acreditar que vai haver sinal, vai haver algum movimento para atingir, para chegar a você. Sua avó não estava errada quando dizia que "quem tem sede vai ao pote".
Outras vezes, as escolhas estão feitas antes de você aparecer na história. Se você apareceu e nada mudou, mude você. Mude-se para bem longe da pessoa.
As pessoas que têm relacionamentos e se envolvem com outras podem optar por estar com quem apareceu depois. Mas olhe bem quantas amigas nossas desempenham a função de amantes há incríveis 5 ou 10 anos (fora nossa grande amiga G., que ficou 15 anos nessa função)?
Se a pessoa quer, ela desafia o superego, joga tudo para cima, como fizeram Alex e depois, Adriano, e vai viver o novo. O resto é puro comodismo.
Façamos assim, para que cada um possa ficar com suas próprias impressões sobre esses processos neuróticos dos relacionamentos e das compulsões: dêem uma olhada em Trapo, de Álvaro de Campos, cujo fragmento "Até amaria o lar, desde que o não tivesse." é tudo! e a gente vive repetindo - ai, meus amigos neuróticos queridos, como somos parecidos!

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos

Agora que "tenho o lar" morro de medo de amar ao lar ou de deixar de amar porque passei a tê-lo. Eu entendo vocês, Léo e Stella. Entendo mesmo!e desculpem-me se isso parecer um conselho: já bebi desses venenos, vocês sabem.
E, sim: estou com Ele. Estamos...ficamos e estamos!

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