Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 28 de setembro de 2010

A porta aberta dos perigos


Não obstante a gente ouvir por aí aquele silogismo: "Você quer ter razão ou quer ser feliz?", estar em qualquer tipo de relação é reconhecer a necessidade de ser concessivo, de declinar da própria razão, em favor da paz e da sustentação do relacionamento (amizade, rolo, trabalho, vizinhança, todo tipo de situação com relacionamento pelo meio)
Esse não é um ato fácil de realizar, nem nada que podemos fazer todo dia e sempre.
Então vi, na sessão de análise, minha pouca predisposição a um relacionamento.
Não é que eu não queira, não é que eu não deseje o relacionamento: é que eu não tenho paciência, nem parcimônia, nem coragem.
Falo do ex-Grande Amor da Minha Vida como uma verdadeira ferida aberta.
É um paradoxo: de fato, não amo mais aquela pessoa - fato claro,indiscutível, indisfarçável. Mas eu vivo falando disso - e falo como quem exibe as feridas de guerra ( e diz: não quero mais batalhas. Não me sinto vitoriosa ao sair dessa guerra, eu me sinto sobrevivente).
Amar é uma guerra. Olha, "Amar é um deserto e seus temores".
É, sim, "Um deserto e seus temores": você morre de sede, você morre de medo, você se vê sozinho, você se percebe sozinho, você se vê imerso em muita areias, sempre sob o risco de levar picadas de escorpiões, vivendo dias quentes e tórridos e noite de frio intenso, você perde a bússola, você se deixa guiar pelas estrelas, mas quem aí entende de estrelas?
Mesmo se o outro está ali, você está sozinho.
Mesmo que você aprisione o outro a fim de protegê-lo, você está sozinho.
A analista me disse que não há homem sozinho - coisa que eu já sabia, que já havíamos discutido. Mas doeu saber que não há homem fiel.
Ora, pois, que coisa pareceria mais óbvia?
Por que a dor, então?
Por que ela mostra que as raras exceções, os homens fiéis,para contrapor o imperativo estrutural-psíquico e cultural, apresentam neuroses absurdas, coisas que a gente nem acredita que existe. E ela mostrou o alto preço da fidelidade masculina.
Até chegar nesse ponto eu tinha falado sobre os meus amores contrariados, sobre o fracasso dos meus amores, sobre os inúmeros chifres que levei.
Ela me mostrava que uma mulher não pode medir o sucesso ou fracasso dos relacionamentos por estes parâmetros: a mulher mais linda do mundo, a mais inteligente, a mais perfeita que houvesse, seria insuficiente para um homem. O homem sempre irá trair quem quer que seja a mulher com quem ele estiver porque ele vive a plenitude dos desejos, eles (homens) se lançam, eles não renunciam.
O superego vigilante dos religiosos, dos moralistas e de quem for, cobra preços absurdos.
Se o homem está só, não se aproxime: ou é gay ou é problemático.
A pergunta então, volta-se para mim: quero viver sem chifres ou quero namorar C.? não há meio-termo.
Solteira, sim. Sozinha, sempre!
Ouvindo isso relembrei minha conversa recente com uma grande amiga que me dizia que os desejos dela também não cabiam no casamento. Contudo, ele, o marido, era fiel, amigo,cúmplice e etc e por isso ela não ficava lá com o objeto dos desejos dela, porque ela não tinha essa desculpa de se dizer em vingança, de se dizer maltratada ou depreciada por ele.
Então ela renuncia ao desejo, até porque se tornaria ilícito e imperdoável.
Eu bem queria exercitar isso de "não importa com quem você se deite,/que você se deleite seja com quem for".
Bem, até que não sou ciumenta.
Fico olhando as meninas se jogando para ele. Ora, mas se ele não fosse desejável, eu não estaria com as minhas mãos nele.
Que bom que muita gente concorda comigo, então, que ele é desejável...
Vem o outro lado da guerra: sempre haverá outra mulher.
Sempre haverá uma luta, uma guerra.
Vejam como Carla perturba a minha vida: eu, a trezentos e tanto quilômetros de distância Daquele e ela me enchendo de mensagens, para mostrar que está lá com Aquele, se mordendo de ciúmes não da amizade que temos, mas por ele falar abertamente o quanto me amou e o quanto acredita que ninguém o amaria mais que eu.
Carla não vê isso como passado - ela fica lá, se comparando...e enchendo o meu saco, porque não fosse pela interpretação que isso pode ter, eu pegaria um vôo agora e iria quebrar a cara dela ao vivo, como bem me aprouvesse.
Eu não queria ser aquela outra, a suposta dona/esposa do rapaz homônimo do livro de Lima Barreto: Olhos atentos, olhos abertos - claro, olhando na direção errada, né? - com medo de todas as ameaças de saias que rondam aquele seu Coração dos Outros.
Ah, meu Deus, eu não quero estar em eternas disputas com outras mulheres.
A gente sabe que os homens não valem tais penas, mas estar com um é estar em constante ameaça de perda, é olhar a outra e entrar em conflitos silenciosos com ela.
Não tenho energia para isso.
Nem lembro quantas vezes dei o W.O., larguei a batalha e disse: "fica para você!", por orgulho, por amor próprio e por cansaço. Quantos Caso do vestido, de Drummond, eu vivi? e dá para contar?Todas as guerras cansam.
Coitado de C., acho que nem desconfia que eu sou assim, que eu sou toda marcada e escoriada pelas guerras que travei na vida amorosa.
Eu, que um dia citei o Consolo na praia, de Drummond, agarrando-me à segunda estrofe como uma verdade inquestionável:
"O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou
Mas o coração continua".

Esqueçam isso. Tive uma interpretação errada.
Ora, o coração continua sim: continua estilhaçado das experiências anteriores,aglutinou feridas e fraturas dos amores anteriores. Até chegar ao terceiro amor, já era, adeus integridade, já acumulou feridas, já se diz experiente porque sofrido...e a cada sofrimento, um medo maior da dor.
Quem aguenta isso repetidas vezes?
Poxa, Clarice Lispector escreve como uma das epígrafes de A Via crucis do corpo: "Quem viu jamais vida amorosa que não a visse afogada nas lágrimas do desastre ou do arrependimento?"
Se ela que é ela traz isso como epígrafe, oxalá eu, que nem sei sei se fui elevada à categoria de gente?
Mas saber que o gosto bom do começo vai ser todo tomado por uma outra novidade - agora eu sou a novidade... -, saber que o tempo vai jogar verdades na cara da gente e saber que eu tenho medo de tudo o que eu ainda não conheço nele, ah, isso me arrasa.
Todos os dias olho as feridas da guerra passada. Pensando bem, muitas delas viraram tumores: estão aqui. E como estão presentes nas respostas que eu nunca tive, nas perguntas que ficaram, no que nunca será compreendido, nos desesperos e nas decepções cristalizados.
Quando eu estava lá, toda esbandalhada, sangrando, com a vida por um fio, com as febres e com os delírios da perda, rogando um remédio, uma anestesia, um analgésico ou uma saída, minha analista me disse: "Você aguenta, você tem estrutura."
Não há receita: se você se der mal no amor, só o tempo cicatriza - sem band-aid, sem anestesia, sem curativo...oh, como demora!
Agora ela me faz deduzir que acha que eu aguento o preço.
Muito bem, é o equivalente a dizer: quer pular de bodyjump? vai, menina, é gostoso, é uma emoção incrível, você vai ver que vale o preço alto.
Vai te dar a sensação de quase-morte, é um perigo, aquela altura e apenas uma cordinha elástica a te sustentar...mas é emocionante e gostoso. Vai lá! você vai se machucar, mas depois passa, você aguenta.
Já disse e vou repetir: eu encarno, às vezes, aquele personagem lá da A Igualdade é branca, o que quer morrer, Mikolaj.
Quando Karol resolve matá-lo (a seu próprio pedido), usa uma bala de festim, para assustar Mikolaj e fazê-lo ver o absurdo do suicídio, dizendo: "Mas todo mundo sofre, Mikolaj!". E este , por sua vez, diz: "Eu queria sofrer menos".
É um pouco meu caso: eu queria sofrer menos, bem menos que o resto da humanidade.
Não é por me sentir melhor que a humanidade, pense bem: é ao contrário mesmo. A humanidade aguenta, eu não.
Ele não sabe de nada disso.
Eu sei que não sei um monte de coisas.
Meu estoque de coragem está em baixa.
Eu, que nunca tive medo de altura, que tenho no currículo várias descidas de rapel daquela caixa d'água ali da CEASA de Simões Filho, no caminho que a gente faz quando vai ao aeroporto, lembram? que tem aquele rio ou é lago, em volta? dá uns 35 a 50 metros, não é? eu já desci tanto aquilo lá nos meus tempos de recrutamento...e não tive medo senão o de que a pessoa que controlava minha corda lá embaixo se distraísse.
Desci tanto aquilo lá, numa emoção gostosa de guria, de criança...e talvez a coragem tenha existido só para contrariar o sargento, que duvidava das mulheres e achava que estava me castigando por me fazer descer aquilo lá. Ah, bobo, medo eu tinha era das águas profundas - depois falo disso.
"Não quero medir a altura do tombo", diz Zeca Baleiro - tenho medo de tombo não, porque se perco o equilíbrio, não me permito cair, me apóio. Tenho medo das sequelas de um queda plena, de uma queda livre.

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