Louquética

Incontinência verbal

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Carta aos suicidas


A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça
no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me
sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um
capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da
escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas concientes de si mesmos, não conscientes
deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso,
entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A
minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não
sabem por que ficou ali.

(APONTAMENTO, poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa).

Escolhi este poema para os meus amigos suicidas, para os meus dois amigos suicidas, ela e ele.
Ela, minha aluna mais brilhante de todos os tempos, de todas as eras. Por isso mesmo, a vida sempre lhe pareceu pouco.
Ele, inteligentíssimo, meu amigo do coração, aquele que tira o dia para ficar comigo, conversando tolices, enganando um pouquinho a vida.
Ela, que tomou mil comprimidos, que articulou a própria morte, meticulosamente.
Ele que, que passou do indeciso punhal na garganta para as incertezas dos bromodiazepínicos, que, para ele é uma morte.
Ela, que sempre viveu tudo o que escreveu.
Que ganhou prêmios nacionais de cinema, enquanto graduanda de Letras.
Que desbancou os concorrentes de Comunicação e ficou trabalhando lá na ilha de edição daquele canal, sempre tentando aceitar a vida.
Ela, que não tem ninguém, nem mãe, nem família. E lhe restou o namorado para quem ela se achou um peso.
Ele, simplesmente brilhante, intolerante com a mediocridade. Era lógico que ele não aceitaria uma vida medíocre.
Ele, tão bom poeta.
Ele que hoje em dia tenta segurar nas mãos simbólicas para não sucumbir.
Continuo achando que os suicidas amam a vida, por isso mesmo não lhes servem qualquer vida.
Agradeço muito a Deus pelos métodos de você terem falhado, porque minha vida não seria a mesma sem vocês aqui.
Se eu fosse contar todos os meus amigos suicidas, teria pelo menos quatro, sendo três mulheres e um homem.
Destes, apenas uma teve sequelas, porque se jogou do alto de uma casa de andares: ficou na Fisioterapia para recuperar os movimentos, vive de tarja-preta, mas está vivendo, vive vivendo, não vegetando, se é que a redundãncia aqui expressa pode ser bem entendida.
Sei que se o corpo vive, a alma se parte, vira caco, mil cacos...
Também é meio incômodo admitir que eu estou feliz, mas estou: estou feliz por vocês estarem vivos, por estarem comigo mesmo em face das distâncias e estou feliz porque alguém está me fazendo feliz neste momento.
E é um momento.
Como tudo que é bom, como todo sonho bom, eu quero que dure.
Eu quero que dure a nossa amizade, também.
Mas o que é bom passa.
O que é ruim, também.
E nós também passaremos. Não tenham pressa, aproveitem a viagem!

Nenhum comentário:

Postar um comentário