Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Pecado Original


Todo dia, toda noite
Toda hora, toda madrugada
Momento e manhã
Todo mundo, todos os segundos do minuto
Vivem a eternidade da maçã
Tempo da serpente nossa irmã
Sonho de ter uma vida sã
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
Todo beijo, todo medo
Todo corpo em movimento
Está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto
Todo pranto, todo manto
Está cheio de inferno e céu
O que fazer com o que DEUS nos deu?
O que foi que nos aconteceu?
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
Todo homem, todo lobisomem
Sabe a imensidão da fome
Que tem de viver
Todo homem sabe que essa fome
É mesmo grande
Até maior que o medo de morrer
Mas a gente nunca sabe mesmo
Que que quer uma mulher
(Caetano Veloso - Pecado Original).
Interessante que no mito, Orpheu encanta com a música - encanta até Caronte, Cérbero e o próprio Hades.
Deveríamos aprender muito com este mito, especialmente pelas duas mensagens principais: a que diz respeito a ninguém poder enganar a morte (porque Orpheu desce ao Hades para reaver Eurídice, que estava morta) e a que diz que os mortais têm muito medo da felicidade porque ela é um direito apenas dos deuses (Eurídice e Orpheu eram muitos felizes).
Poderíamos, sim, colocar uma terceira lição, àquela que se refere à nossa confiança, porque era condição imposta por Hades que Orpheu não olhasse para trás a fim de verificar se Eurídice estaria mesmo lhe seguindo até à saída para o mundo dos vivos. E daí é que sempre olhamos para trás.
Incorporamos o mito à vida contemporânea, às nossas neuroses, aos nossos complexos.
Como este meu medo de que a felicidade passe rápido, ou que seja sumariamente destruída, ou ainda, como esta mania de achar que toda felicidade é suspeita.
De Orpheu fica em mim o sentido encantador/encantatório da música.
Adoro música.
Hoje me senti feliz porque Cléo se lembrou que eu gosto dos Strokes - e tinha tanto tempo que a gente não conversava sobre nada que lembrasse música. Havia tempo, até, que a gente não se falava mesmo.
E ele, quando escreveu para mim, ante meus queixumes de saudade, citou justamente os versos iniciais do Pecado Original de Caetano Veloso:" Todo dia, toda noite, toda hora, toda madrugada/momento e manhã...", como se soubesse há séculos como eu gosto desta música, como se impusesse os significados, menos por imposição do que por explicação ao que eu argumentava.
Talvez o caminho todo da versificação da música seja apenas para chegar ao ponto em que se afirma ao tempo em que se pergunta: "Mas a gente nunca sabe mesmo/Que que quer uma mulher". Ah, claro que sabe!

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