Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 27 de julho de 2011

À imagem dos semelhantes


Sabe quando você está falando de uma coisa e, de repente, conclui outra? Pois, então, andei falando de como prefiro os semelhantes a mim, os parecidos... bem, eu me referia aos homens. Daí cruzei este pensamento com os relatos de intolerância étnico-racial de que ouço falar na televisão e que presencio em gestos silenciosos no meu dia a dia. Concluí, que sim, desde sempre dizem que, conforme os preceitos cristãos, devemos amar aos nossos semelhantes. Logo, se os semelhantes são os parecidos, está explicado o ódio pelos diferentes.
Não só porque "Narciso acha feio o que não é espelho", mas porque somos exímios em segregar.
Também estive conversando sobre uns amigos próximos que querem mudar o mundo. São aqueles que, de fato, querem mudar o mundo, desde que a mudança não tenha que passar por suas próprias cozinhas.
Os anti-racistas que conheço, majoritariamente negros, exigem que suas empregadas e diaristas os tratem por "senhor" e "senhora", que todos os territórios hierárquicos sejam bem marcados, bem delimitados - e se alguém não entendeu, isso sim é dizer: "Coloque-se no seu lugar".
Outros tantos vivem os conflitos religiosos: querem viver seus cultos de matriz africana, desde que a família não saiba disso. Estes são os mesmos que, mui prudentemente, descontróem este suposto sincretismo religioso brasileiro.
Não estou chamando estas pessoas de hipócritas. Afinal, elas não sabem ler os próprios gestos, as atitudes, as condutas que adotam - introjetaram o negócio, que se há de fazer?
Uns tantos pegam carona na superioridade de ser e de estar de seus mentores, orientadores, diretores e afins: copiam tanto tudo deles, para se inserir, que acham mesmo que chegaram a um ponto onde ninguém mais é capaz de chegar, a menos que possam se igualar à suas genialidades, inteligência e sagacidade incomuns. Mas, fazem o discurso da igualdade.
Não querem, no fundo, igualdade nenhuma: querem ser singulares, querem estar onde é difícil chegar e não permitir que mais ninguém chegue.
Às vezes falo na maior dureza aos meus alunos: " Todos são iguais perante Deus. Mas até lá, as leis são outras". Não estou me referindo a autoridade, a coisas do gênero, mas ao fato da Justiça, da Educação, das oportunidades não serem as mesmas para todos. Convém olhar o mundo como ele é.
Faço as minhas maldades se eu me sentir aviltada: sei ser reativa. Em pouco tempo devolvo na mais alta retórica qualquer agressão que eu venha a sofrer. Tive uma professora que me ensinou isso perfeitamente e me disse; "Você pode ser agressiva sem ser violenta!". Então já coloquei muita gente em seu lugar, porque sei o jogo e as cartadas.
Acredito que não possamos passar à margem das agressões: seja quando fui lembrada em minha condição de mulher, de afrodescendente, ou inferior hieraquicamente ( aqui incluídos meus duelos com os superiores hieráquicos na pós-graduação e no trabalho), nunca deixei de explicitar o que eu pensava e de devolver a pancada na justa medida. Uma das primeiras coisas que também aprendi foi o direito constitucional à "resposta à altura do agravamento".
E se ensino aos meus alunos o valor da sapiência - pois defino a sapiência como a capacidade de engolir sapos -é porque reconheço que em certos momentos a coerção pode ser grande e as consequências punitivas piores ainda. Mas acaba sendo uma questão de tempo - mais na frente a gente se encontra e descarrega os desaforos engolidos. Logicamente, a prudência é excelente conselheira. Mas, eu que sou vingativa, espero o tempo que for, remoendo na memória, com o mais sincero e assumido rancor. Está aí algo de que não tenho vergonha: minhas mágoas. O cordeiro está apenas como símbolo do meu signo: não sofro resignada.
Sim, bato a cabeça na parede, sou ariana. Entretanto, acho que devolver o tapa é uma questão de Justiça: bateu, levou. E se me oferecerem a outra face eu jamais bato: devolvo exatamente o que me deram, sem trapaças.
Mas, voltemos aos semelhantes: pois é, acho que não sou a única a gostar deles... prova disso é quanta gente quer converter a gente, quer fazer a gente mudar, mas mudar para ficar parecido COM (!). Como se não bastasse a cultura e todas as massificações pós-modernas, aliás, humanas, que esse troço não é coisa de anteontem. Takiupariu, hein, gente, não mudamos nunca! a humanidade é isso aí, uma agressão contra as diferenças - e tanto faz se se tratar de aqueus, hebreus, saxões, incas, ianomami, ostrogodos, maias,visigodos,tupinambá, astecas ou sãopaulinos - basta uma diferença no sotaque, na cor da pele, na sexualidade, no culto, no trejeito, na língua, no time, no bairro...

Gilberto Gil - A Raça Humana

A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus.
A raça humana é a ferida acesa,
Uma beleza, uma podridão.
O fogo eterno e a morte,
A morte e a ressurreição.
A raça humana é o cristal de lágrima
Da lavra da solidão,
Da mina, cujo mapa
Traz na palma da mão.
A raça humana risca, rabisca, pinta,
A tinta, a lápis, carvão ou giz
O rosto da saudade
Que traz do gênesis
Dessa semana santa
Entre parênteses.
Desse divino oásis
Da grande apoteose ,
Da perfeição divina
Na grande síntese
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de Deus.
A raça humana é
Uma semana.

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