Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 13 de julho de 2011

À sombra do Pai


Uma vez, quando eu tinha uns 07 anos, foi logo após a morte de minha avó paterna, ouvi o meu Pai dizendo, em referência a mim: “E eu tenho esta cruz para carregar...”.
A cruz é o sacrifício e o calvário, mas é também o peso. E o peso ( e não a leveza) é o que nos mantém com os pés no chão, presos à realidade, com senso de realidade.
Ilmara comentava comigo, numa certa vez, em contestação à minha decisão de não ter filhos: “Eles me dão senso de existência. Eu não viveria sem eles, eu não existiria sem eles. Antes, se você me chamasse para ir para o meio do mar, sem qualquer certeza de sair de lá viva, eu iria”.
Eu não quis o peso deliberado de sustentar outras existências e de ser responsável por elas: sei que a existência, mais do que um calvário, é já um peso. Nem todos suportam carregar o peso e nem todos têm a alternativa de se dar à leveza, tipo eu, que posso ir para onde eu quiser, que não deixarei órfãos caso eu morra antes do que espero, que vivo a minha vida para mim.
Numa sessão de análise completei o raciocínio da cruz para carregar: eram as minhas lembranças de quando a minha avó se exasperava, gritando pela casa, que se o meu Pai ia para o pecado do adultério com a minha posterior madrasta, que retirasse o crucifixo do pescoço, que não levasse Nosso Senhor consigo para o pecado. No simbólico, vi que o meu Pai me carregava junto (a cruz) para o pecado.
Na verdade, logo percebi que a minha avó tinha medo de que o marido de minha madrasta flagrasse os adúlteros e agisse com a violência típica e legalmente compreensível dos traídos. E vivi esta apreensão por muito tempo, até que o marido de minha madrasta morreu e aquela relação saiu da clandestinidade que o deixava suscetível a ser morto.
Não obstante, demorei muito a matar meu Pai no simbólico. E aquela velha paredinha, aqueles tijolinhos ínfimos, restantes do muro a derrubar dentro de mim continuam, mesmo que quase insignificante.
Meu Pai passou o sábado atrás de mim.
Como eu estivesse na estrada, preferi não atender ao telefone, até porque o sinal iria cair mesmo...
Finalmente ele me encontrou e falou comigo como se eu fosse a maior especialistas em dramas existenciais de todo o planeta.
Ele se queixou de que não conseguia ter alegrias, que ficava contemplando a vida como se não vivesse, que não tinha reações às coisas que outrora o deixavam feliz, falou de tantas coisas, de tal maneira que parecia uma pessoa de carne e osso.
O caso é que eu, de fato, diagnostiquei a crise e concordei que ele procurasse um psicanalista – embora eu saiba que a relação será infrutífera...mas, vai que eu me surpreenda?
Então, me vi na cara do meu Pai.
Se há uma coisa que eu não tenho é esta imbecil curiosidade genética acerca de “como seria a cara de um filho” e daí que me ver na cara do meu Pai foi bem esquisito.
Mas me vi nisso que eu sei e que ele admite: nossa relação com a morte.
Para ele é um pouco mais difícil, porque o meu avô sempre deixou claro que só vale a pena existir enquanto somos jovens. E ele (meu avô) morreu bastante jovem, já se sentindo velho e dizendo, lá nas palavras do Dr. Domingos, o meu avô outrora todo poderoso dono das Minas Gerais, a morrer sem posses: “É preferível ser um jovem pobre a ser rico e velho!”.
Daí que meu Pai se relaciona mal com os sinais do tempo: com o coração, que ele estranha tanto, com algumas varizes e dores na perna, com a corrida matinal e com o futebol que já começaram a ser abolidos... e sente como se aquele corpo não fosse o dele. E olha que ele entrou nos sessenta anos agora!
Às vezes multiplica as preocupações estendendo-as a mim, na insistência para que eu faça um exame de glaucoma, que acompanhe minha pressão... e pouco acredita que estes exames, em meu caso, apontem normalidade.
A diferença nesta nossa relação com a morte está no fato de que penso nela desde cedo e já vi a morte de alguns parentes próximos, de modo a saber, sem a menor preocupação ou pavor, que vou morrer de aneurisma, como minha tia e meu primo.
Manoela conversava sobre isso lá no Rio, dizendo que ela já perdeu dois irmãos, todos de aneurisma...a vez dela chegaria e isso nos coloca muito a par da presença da morte. Embora não haja data certa, entrar nos trinta anos indica esta proximidade - os irmão dela, entre os 33 e os 36 anos. A partir daí, qualquer hora é hora, se o cronograma atávico da morte se cumprir à risca.
Mas nós naturalizamos isso. Temos pena dos colegas que nos vêem discutindo isso e, covardemente, tentam mudar o assunto.
Para meu Pai, ela, a morte, se afigura nos sinais biológicos da degradação dos anos: aquele coração, que já não é o dele; aquelas pernas...onde foram parar as dele? E um estranhamento monstruoso com este corpo que não é mais aquele com o qual ele conviveu tanto tempo e que respondia tão bem aos seus propósitos.
Não quero morrer de acidente de carro e se há um medo, em relação à morte, é o de definhar: de ficar em coma, de não ter como me comunicar...faço pactos absurdos com os meus amigos e parentes e desde os 16 anos, quando votei pela primeira vez e tive que refazer minha carteira de identidade justamente para votar, me declarei doadora de tudo.
Quando eu morrer, levem tudo e aproveitem que é liquidação: sou doadora de órgãos.
Como não morri ainda e não sou mal humorada, até lá, espero que alguns homens interessantes também destinem certos órgãos de meu interesse para o meu deleite em vida. E como a ideia aqui é da reciprocidade, também me doarei plenamente.
Nos meus pactos absurdos, eu que sou a favor da eutanásia, já disse: gente, não delonguem o meu sofrimento, nem cansem as máquinas! Ao menor descuido dos médicos facilitem a minha morte porque existir é um pouco mais do que respirar com a ajuda de aparelhos.
Para quê tanto medo de "andar pelo vale da sombra da morte"?
Sei que o meu pai sofre. Hoje, quando já matei o meu pai no simbólico, percebo-o além do homem de valores questionáveis, senão da ausência total de valores, mas que sofre e estranha a si mesmo, não se reconhece neste que ele está se tornando.
Eu nunca tive medo real da morte,acho que o meu pai também não tem em certos aspectos: tenho medo de sofrimentos mas estes a existência já me deu demais.
Por isso sou teimosa, procuro ser feliz e não discuto isso agora por estar infeliz, não. Pelo contrário, estou num bom momento – tanto que falo do Pai tranquilamente.
E da vida, fico como Caetano: " Eu digo que ela é gostosa!", apesar de tantas vezes ter os seus amargores e suas amarguras - tempero do meu jeito sempre que posso.

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