Louquética

Incontinência verbal

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Outras naus


"A adoração cria o deus, como pensava Kierkegaard. A verdadeira ameaça contida na atual apoteose do cultural é a que se esconde ou manifesta na mais ou menos sutil subordinação do cultural ao político, não no sentido da tradição milenar, levado ao absurdo pelo totalitarismo moderno, mas no sentido soft democrático, da gestão e vivência do cultural como máscara, apenas disfarçada da mais trivial vontade de poderio. Tanto mais irresistível quanto se sabe até que ponto o criador ou o ator cultural - salvo raras exceções - foi sempre sensível, se não ao apelo, pelo menos à solicitação do poder a seu respeito."
(Lourenço, Eduardo. A nau de Ícaro e Imagem e miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 12)
As análises filosóficas de Eduardo Lourenço são a coluna de sustentação de boa parte dos meus argumentos e não posso deixar de dizer que ele discute muito bem os dilemas da cultura portuguesa em tudo quanto se articula com o meu objeto de pesquisa e suas entropias.
Também me ajuda a relacionar os planos que analiso e no seu capítulo Portugal-Brasil: um sonho falso e um único sonhador, esmiúça nossos problemas, sendo claro e direto naquilo que para mim já há muito é uma verdade incômoda:
"O excesso de luz que o discurso brasileiro a propósito do Brasil espalha incessantemente sobre esse continente nu que, num dia de abril de 1500, um escriba deslumbrado olhou como se fosse o verdadeiro recanto do paraíso reencontrado esconde permanentemente aquilo que os brasileiros não desejam olhar de frente, temendo não encontrar ninguém. Sem razão; encontrariam, naturalmente, um retrato digno de ser contemplado tal qual é, dispensando a "mediação" das máscaras, que, no Brasil, não são uma segunda natureza, mas a natureza original. O Brasil é o país do disfarce. Quer ver-se outro do que é, ou disfarça com tanto sucesso o que sente ser, que os outros, e os brasileiros em primeiro lugar, consideram esse jogo aparentemente inocente - de fato, fingimento permanente, se não mentira pura - a verdade autêntica." (pp. 156-157)
E daí em diante sinto como se eu estivesse vislumbrando as várias coisas que venho discutindo em As naus e em Terra papagalli, com todos os riscos que o aspecto contrastivo entre as obras pode me trazer.
Já não se discute a nação como antigamente e muito menos as filiações. E por que deveríamos nos ofender ante as coisas constatadas? se constatam é porque estão aí, visíveis e presentes.
Mas está aí um outro calo na minha tese: há um nacionalismo forte, dual, em voga. Isso me deixa totalmente intrigada.
A construção da brasilidade se renova, se põe em máscaras, se disfarça, está presente sempre - mas o discurso cultural não consegue, de todo, camuflar isso.
Como português, Eduardo Lourenço é um exímio conhecedor do Brasil tanto quanto de sua própria pátria.
À medida que penso chamar atenção para algumas questões, vejo que estou mesmo é a chamar a "tensão", o que significa que, para quem estava atrás de um bom problema, agora eles se mostram numerosos.
Penso que me amarro ao meu referencial teórico de maneira desmedida: em cada capítulo há o predomínio deste ou daquele teórico. Se eu fosse mesmo considerar, há tanta recorrência a Paul Ricouer, de quem uso 04 obras, de Eduardo Lourenço, de Boaventura de Souza Santos, De Hugo Achúgar e de Homi Bhabha, que eu acho que entrego totalmente minhas tendências.
Na minha vida prática eu acho que silenciosamente digo: "Diz-me o que ouves e te direi quem és", porque o que me enlaça às pessoas tende a ser as paridades do gosto musical. E eu gosto muito de música!
Na escrita eu acho que as escolhas teóricas rvelam muito, inclusive do meu deslumbramento, porque esses autores mobilizam tanto conhecimento, socorrem os meus próprios raciocínios, corroboram pontos de vista que eu sustento e se assim não fosse, não seriam citados por mim no meu trabalho. Mas eu reconheço o perigo de minhas tendências - acho que por isso ando tao lentamente, porque escrevo e vejo que é preciso dosar, adicionar outros pontos de vistas...
Mas, como Eduardo Lourenço já dá ênfase nesse livro de onde retirei os trechos aqui expostos, acho fundamental a forma como ele elucida o binômio cultura-política.
Pensar, conforme Kierkegaard, que " a adoração faz o deus" já mostra até onde o autor aprofunda suas análises - e que me resta, senão dizer da genialidade dele? quisera eu ter um terço dela, mas já que não tenho mesmo, o que posso fazer é tirar um proveito responsável.

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