Louquética

Incontinência verbal

sábado, 21 de janeiro de 2012

O vendedor (ou, Terrorismo Delivery)



O terrorismo não se faz só de bombas, ameaças, conflitos e estados de tensão latente: ele se faz no dia-a-dia através das ameaças apocalípticas de Inferno, do estado de terror instaurado pelos Governos regidos pelo medo e pela intimidação, pelos profetas do terror que vigiam condutas e posturas morais, mas, em meu caso, o terrorismo veio pelas mãos do meu amigo que inventou de se aventurar pelo ramo das vendas.
É interessante passar credibilidade e acreditar na qualidade, eficiência e necessidade daquilo que se vende: uma pessoa de nossa confiança, quando nos oferece um produto agrega ao produto vendido aquela confiança que depositamos nele. Contudo, há um processo meio auto-ajuda, autoconvencimento e lavagem cerebral. Coisas, assim, numa onda Amyway e Lair Ribeiro.
Então o meu amigo disse que queria falar comigo. Este amigo é da era em que eu fui militar, isto é, já o conheço há muito tempo e simpatizo com ele. Se alguém me diz que quer falar comigo, imagino que seja algo importante, que seja pessoalmente e que seja sigiloso. Logo, não pergunto do que se trata, mas faço cá minhas conjecturas. Pensei se tratar de assuntos políticos, juro!
Lá vem ele, com um Sancho Pança qualquer: deixou a cargo do escudeiro a conversa enfadonha e terrorista. Começando pela ideia de importância da água, veio colocar sob suspeita a qualidade da água que eu consumo – péssima ideia, uma vez que tenho poço artesiano para o consumo da casa e água mineral para consumo alimentar. Para piorar ainda mais: não tenho família, aliás, minha família sou eu.
Desfilaram em minha frente, na tela do laptop, ratos, cadáveres, contaminações, fígados dissecados em estado lastimável supostamente por causa da água, vermes e nojeiras em geral e, como não poderia deixar de ser, o terrorismo ameaçador para pleno convencimento.
Já vi água contaminada causar mil e uma coisas, mas nunca vi ninguém, em condições normais "morrer de água" (nem de maconha – e olha que quem diz sou eu, que nem gosto da erva). Afogamento não vale!nem engasgos, tá? estou falando de outra coisa. Causa mortis: água. Nunca vi.
E se for para viver sem o que eu gosto, de modo a trocar um bom consumo de pães e doces por uns cinco ou dez anos a mais de vida, morro cedo e feliz. Vida sem graça não é vida, é uma pausa chata entre o berço e a sepultura, certo? É, está certo, sou radical: vida sem graça não é vida; sexo ruim não é sexo; comida sem sabor não é alimento... Problema de quem quer chatices supostamente saudáveis e saúde sem prazer.
Achei que o meu amigo transferiu sua oratória de evangélico pregador para o produto: ou compra ou vai para o Inferno. Depois vi que não, que aquilo poderia assustar aos desavisados e forçar a compra.
E tudo começa com a pergunta: “Quanto vale a sua saúde?”, para então, no final dos 50 minutos de blablablá vir o preço: dois mil reais. É muita cara de pau oferecer um purificador de água a dois mil reais. Sim, para os amigos, tipo eu, mil e quinhentos reais – talvez parcelados em três vezes, excepcionalmente, para mim.
O teste prático é um terrorismo triplamente qualificado, com intenção de matar a gente de indignação: ele acopla o aparelho na torneira da pia da cozinha, testa daqui e dali, acrescenta produtos químicos e reagentes e conclui que estamos tomando suco de bactérias. Não sei como ele não pegou minha água mineral naquele instante para fazer teste de coliformes. Presumo que soubesse que isso detonaria o trabalho dele.
Perplexa, tive que agüentar as perguntas práticas sobre meu cartão de crédito e sobre a necessidade real de adquirir aquilo lá. Só se eu estivesse louca: a tecnologia YXP mega-oxy-base-international, que não passa de pedrinhas de carvão ativado, ozônio e afins, não me convenceu. Não é que não filtre ou que não purifique a água: funciona, eu creio. Justamente isso: boa parte do que a gente consome se baseia em crenças - crença na idoneidade do fabricante, crença na propaganda, nos resultados, nos benefícios, na qualidade, na eficiência...
Num dia sei lá quando, o Dr. Dráuzio Varela examinava pulmões de fumantes e de não fumantes, na televisão. Aí o repórter notou umas manchinhas tipo as sardas de um peixe surubim no que era considerado o pulmão saudável e perguntou do que tratava: o médico disse que eram resíduos de poluição que foram respirados por ele e tal e tal. Isso, sim, assusta, mas sabemos que é real. E quem vai me oferecer um ar melhor? Um purificador de ar que se estenda por onde quer que eu vá? O problema continua sendo um problema coletivo, de ar, de água, de alimentos, de tudo que consumimos com impurezas... Mas, mesmo assim, vivemos.
O que observo, porém, é a forma como os terroristas do comércio fazem a aquisição de um produto parecer não apenas uma necessidade, mas uma questão de vida ou morte.
Perdi meu tempo, mas não perdi meus mil e quinhentos reais... ou dois mil reais (quem sabe se a amizade supera os juros, não é?).
Eu tenho vivido sem coisas essenciais, quanto mais sem purificador de água? Se alguém quiser me vender alguma coisa, se ligue: sou osso duro de roer. E mais: em breve, numa loja perto de você, finalmente você vai encontrar o Spray Repelente de Vendedores Terroristas. Na compra você ganha grátis um Spray Master Repelente de Vendedor da Hailiving, que foi o que me aterrorizou aqui em casa.

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