Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Vestindo fantasias


Ele me perguntou se eu tinha fantasias. Ora, todo mundo tem, algumas das quais inconfessáveis.
Mas eu sou irônica e faço as trocas semânticas necessárias para esvaziar as malícias implícitas na pergunta. Então, respondendo ainda mais precisamente à pergunta, eu tenho fantasias, sim. Esta aí da imagem foi do carnaval deste ano, em março.
Eu acho super interessante pensar nas fantasias não pelo contorno sexual da questão, mas pelo enlevo de criatividade que isso suscita, onde todo mundo quer ser ator, quer interpretar, quer viver outras situações, usar outras máscaras, retirar algumas mais.
Acho engraçado que um homem tenha tido dúvidas sobre a capacidade imaginativa das mulheres, sobre esta intersecção entre homens e mulheres (e outros gêneros) no tocante a querer viver fantasias – das quais, muitas irão ser realizadas e muitas também se mostrarão como meras curiosidades, como quando imaginamos o sexo dos evangélicos (que não é nada diferente das práticas de crentes de outras vertentes).
A vida sexual das pessoas é algo que interessa a todo mundo, é ponto em que todo mundo tem curiosidade e eu penso no que eu sempre cito, da letra de Caetano Veloso: “Todo mundo quer saber com quem você se deita,/nada pode prosperar.” Sexo vigiado, condutas morais em suspeita, muitos holofotes. Mesmo em tempos de sexo explícito, parece que ninguém viu ainda o quanto realmente queria ver.
Recentemente eu me impressionei com um fato: eu estava no shopping, com Tella, porque ela estava procurando uma lingerie específica, diferente, para impressionar o entediado crente-sonso-cafajeste com quem ela tem o secular rolo. Então, sugeri que a gente entrasse na lojinha de lingerie ali do shopping, que nós sabemos ser também uma sex shop.
Olhamos, olhamos e olhamos e, dentre fantasias, géis, joguinhos eróticos, óleos e acessórios diversos, uma senhora já sexagenária nos apresentou um vibrador poderosíssimo e falou; “ É melhor que homem!”.
De fato, o modelo era instigante, para dizer o mínimo: cheio de funções, de um material excelente, gelatinoso na extremidade, flexível, anatomicamente perfeito, tinha uma vibração ritmada, várias intensidades de vibração e vários movimentos, além de umas bifurcações capazes de atingir todas as terminações nervosas da área a que se destina. Com um desses, não há ponto G que se esconda, nem há qualquer possibilidade de que quem ainda não o conhece, se furte a ser apresentada finalmente ao Doutor Orgasmo, meu médico preferido e o profissional que eu recomendo para dar um up grade na vida sem graça das minhas amigas entristecidas. Ah, e resolve minhas tristezas muito bem, também – este Doutor é altamente qualificado, mas não é todo mundo que sabe conduzir a gente até ele, daí que muitas o procuram sozinhas, quando o melhor seria fazê-lo acompanhadas. Bem, só ou acompanhada, as visitas periódicas a este doutor tornam a vida mais alegre.
O que me impressionou foi a desenvoltura daquela senhora do balcão; ora, já não se fazem mais mulheres mais velhas como antigamente! Elas dominam muitas artes, muitas técnicas e muito conhecimento de causa. E não que sejam exatamente paritárias, ao contrário, mas ela me lembrou a protagonista do conto de Clarice Lispector, Ruído de Passos , que reproduzo abaixo:
“Tinha oitenta e um anos de idade. Chamava-se dona Cândida Raposo.
Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vertigem quando cheirava profundamente uma rosa.
Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.
Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista. E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:
- Quando é que passa?
- Passa o quê, minha senhora?
- A coisa.
- Que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.
- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.
Olhou-o espantada.
- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!
- Não importa, minha senhora. É até morrer.
- Mas isso é o inferno!
- É a vida, senhora Raposo.
A vida era isso, então? Essa falta de vergonha?
- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais...
O médico olhou-a com piedade.
- Não há remédio, minha senhora.
- E se eu pagasse?
- Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.
- E... se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer?
- É, disse o médico. Pode ser um remédio.
Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândida Raposo perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.
Nessa mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte.
A morte.
Pareceu-lhe ouvir ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo.
(LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, PP. 55-56)

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