Louquética

Incontinência verbal

domingo, 8 de maio de 2011

Águas passadas


" - Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci.
Eras a monotonia de meu amor eterno, e eu não sabia. Eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados. O que era? era como a água escorrendo numa fonte de pedra, e os anos demarcados na lisura da pedra, o musgo entreaberto pelo fio d'água correndo, e a nuvem no alto, e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado, e o silêncio no vôo dos mosquitos. E o presente disponível. E minha libertação lentamente entediada, a fartura, a fartura do corpo que não pede e não precisa.
Eu não sabia ver que aquilo era amor delicado. E me parecia o tédio. Era na verdade o tédio. Era uma procura de alguém para brincar, o desejo de aprofundar o ar, de entrar em contato mais profundo com o ar, o ar que não é para ser aprofundado, que foi destinado a ficar assim mesmo suspenso.
Não sei, lembro-me de que era feriado. Ah, então, como eu queria sentir a dor: ela me distrairia daquele grande vácuo divino que eu tinha contigo. Eu, a deusa repousando; tu, no Olimpo. O grande bocejo da felicidade? A distância se seguindo à distância, e à outra distância e mais outra - a fartura de espaço que o feriado tem. Aquele desenrolar-se de calma energia, que eu nem entendia. Aquele beijo já sem sede na testa distraída do homem amado repousando, o beijo pensativo no homem já amado. Era feriado nacional. As bandeiras hasteadas.
Mas a noite caindo. E eu não suportava a transformação lenta de algo que lentamente se transforma no mesmo algo, apenas acrescentado de mais uma gota idêntica de tempo."
(LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pp.155-156)

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