Louquética

Incontinência verbal

domingo, 15 de maio de 2011

Deu a louca no conto infantil


Tenho contra a elite intelectual as mais sólidas acusações de incompreensão frente aos fenômenos da indústria cultural.
Observe-se que esta fonte maravilhosa de lirismo e criticidade, que é a música baiana, costuma ser incompreendida e negligenciada pelos pensadores brasileiros que, acima de tudo, desprezam a criatividade de certos compositores.
Lembrai-vos, irmãos, que há pouco mais de um ano uma banda baiana de axé nos presenteava com uma fantástica releitura do conto infantil da Chapeuzinho Vermelho, propondo a modernização desta enigmática figura dos nossos imaginários, cantando assim:

Eu sou o lobo mau (au, au)
Eu sou o lobo mau (au, au)
E o que você vai fazer?, haaaaaaa!
Vou te comer, vou te comer, vou te comer,
Vou te comer, vou te comer, vou te comer,
Vou te comer, vou te comer, vou te comer,
Vou te comer, vou te comer, vou te comer.
Chapeuzinho pra onde você vai? diz aí menina que eu vou atrás
Chapeuzinho pra onde você vai? diz aí menina que eu vou atrás
Chapeuzinho pra onde você vai? diz aí menina que eu vou atrás
Chapeuzinho pra onde você vai? diz aí menina que eu vou atrás
Oxe,pra que você quer saber?
Eu sou o lobo mau, au, au
Eu sou o lobo mau, au, au
E o que você vai fazer?
Vou te comer, vou te comer, vou te comer,
Vou te comer, vou te comer, vou te comer,
Merenda boa, bem gostozinha
Quem preparou foi a mamãezinha.
Êta danada, êta!
Merenda boa, bem gostozinha
Quem preparou foi a Ivetinha
Êta danada, êta!
Vou te comer, vou te comer, vou te comer...

Atente-se que o sujeito lírico oscila entre o predador e o ser desejante, exercendo uma certa sedução sobre a Chapeuzinho que, em sua desfarçatez, pergunta o que o lobo irá fazer, apenas para obter a resposta: "vou te comer!", porque em tempos de bicharada solta e moderninha, não é todo dia que se acha um lobo heterossexual dando sopa.
A profundidade filosófica desta letra também se aplica ao fato de que nas entrelinhas desta inteligente composição encontramos referências a Hobbes, filósofo para o qual "o homem é o lobo do homem".
Poderíamos adotar uma interpretação sexualizante ou homossexualizante, porque "o homem é o lobo do homem", logo, devora à sua própria espécie, ao seu próprio semelhante, é inimigo dos seus iguais, o que não parece se aplicar a este lobo especificamente, que é macho e bem resolvido.
Educadamente, o sujeito lírico não segue a Chapeuzinho sem o seu consentimento, denotando a aquiescência da moça para tudo o que a partir dali acontecer. Por isso ele pergunta: "Chapeuzinho, onde você vai? diga aí, menina que eu vou atrás". Contudo,o lobo confuso não concatena bem suas proposições e quando é a Chapeuzinho que, num volteio articulado com a oralidade baiana chega a dizer; "oxe, para quê você quer saber?", ele simplesmente diz: "Eu sou o lobo mau - au, au!", resposta totalmente incongruente, desconectada da pergunta. Aliás, lobo mau, au-au,parece ser a onomatopéia errada porque lobos uivam, não latem.
Mas vai que o criador da poética letra queira dizer que sob a pele do lobo, assim como sob a pele da maioria dos homens, esconde-se um tremendo de um cachorro? sei lá...
Interessante é, pois,notar que a "merenda boa bem gostosinha" é sempre preparada pelas familiares da Chapeuzinho, todas mulheres, o que confirma a vocação heterossexual do lobo e seu desprendimento em relação à idade destas mulheres, pois que ele pretende comer a merenda boa da Chapeuzinho, da mãe dela (que provavelmente está na Idade da Loba) e da vovozinha, pois esta pode dar um bom caldo.
E agora a gente sabe porque certas narrativas entram para os cânones da literatura e outras não: não se pode negar a Escola dos Tempos, a forma como cada geração faz permanecer viva a mesma história contada, ouvida, lida, discutida. E neste ínterim, não é possível descuidar que a música baiana faz reverberar histórias e narrativas em que se contemplam tantos os clássicos da literatura infantil quanto as modernas HQ, como agora ocorre com a Liga da Justiça.
É preciso ver que há um alerta nessas músicas, além de importantes convites à reflexão sobre heróis e vilões; frente à violência que não poupa nem a Mulher Maravilha, nem o Superman que, desprovidos de equipamentos de proteção, têm que fugir ("Foge, foge, Mulher Maravilha; Foge, foge, Superman).
E enquanto isso, na sala de Justiça, meus livros me esperam porque eu estou aqui de bobeira e meus dois capítulos da tese não estão prontos.
P.S.: Procura-se um lobo mau, com bons olhos, bom nariz, boas orelhas e boca igualmente fantástica. Interessados, passar aqui em casa fora do horário comercial.

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