Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A cartomante


“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras”.
Assim começa o conto A cartomante, de Machado de Assis. Não deixo de pensar no conto, não apenas porque gosto dele, como porque coincidentemente duas amigas minhas estão me enchendo o saco para eu ir a uma cartomante.
O problema é que eu não acredito em cartomantes. E eu já disse, não é mentira: tenho tia astróloga, astróloga mesmo, que sabe tudo de planetas , de conjunções astrais, de mapa astral e todo o resto e que, diante do que eu já vi, nem poderia duvidar. Mas dentro de mim eu tenho resistência, não tem jeito.
Olha quanto eu repito que não vou a cartomantes porque o passado já passou e, portanto, sei tudo sobre ele; o presente eu estou vivendo e, por isso, sei tudo sobre ele também. E sobre o futuro ninguém sabe. Logo, não há função em ir à cartomante.
Já senti curiosidade, já tentei ir, já tentei acreditar, mas a idéia não decola.
Acho engraçado é fazer a sabatina, o jogo dos acertos com as cartomantes: Cléo me fala que Ana ficou calada, que ela própria ficou calada, só esperando ver o que a cartomante acertava. E ela acertou tudo.
Pelo amor de Deus! Os problemas das mulheres são previsíveis. Retomo o mesmo conto de Machado de Assis:
“ – Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois, saiba que eu fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “ A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...”
Também os crentes quando querem nos converter perguntam se temos problemas financeiros, problemas familiares e propõem: “pare de sofrer agora!”. Receita velha para eternos problemas.
Assim como Camilo, todas as vezes em que cogito acompanhar alguém é por curiosidade ou por algum desespero interior. A reflexão sempre acaba me dissuadindo mas, já me deixei perturbar acerca de previsões que ouvi sobre os outros, mas coisa de bruxo de casa que não faz milagre, lá no meu trabalho mesmo.
E, neste caso, como atingia de vez duas pessoas que eu amo, embora só se referisse a uma, me deixei perturbar – previsão feita para ele e que eu nunca ouvi da boca da própria adivinha. O caso é que, como Lévy-Strauss, eu acredito na eficácia do simbólico. Esta sim, não erra nunca.
E acredito em um bando de coisas, que vão do poder destrutivo da inveja ao mau-olhado, passando pela eficiência das benzeduras e dos banhos de descarregos, orações , novenas, qualquer coisa, menos previsões sobre o futuro.
Agora, Tella se enroscou com um pai-de-santo. Ela, que é adventista, quer porque quer que eu vá à mesma cartomante que ela freqüenta – e eu nunca fui a um babalorixá embora no meu emprego anterior tenha tido um colega que era babalaô e a quem eu visitei.
Cléo se sente ofendida pela minha descrença. Tella, nem se fala mais. O problema é que são cartomantes diferentes, cada uma ao preço de setenta reais a consulta. Aí eu vou ficar sem fé e sem dinheiro, né?
O final de A cartomante de Machado de Assis é tão trágico quanto o final de Hamlet, que é aludido na primeira linha do conto: acreditando na cartomante, Camilo vai encontrar Vilela, o marido de Rita, que também é seu amigo, e leva dois tiros fatais (após constatar que Rita também fora morta por Vilela).
Mas somos seres simbólicos, eu entendo isso. Só não consigo acreditar em cartomantes.
(Excertos retirados do livro Contos escolhidos de Machado de Assis, editado pela Martin Claret, em 2004)

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