Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 17 de maio de 2011

Por enquanto


"Como ele não tinha nada o que fazer, foi fazer pipi. E depois ficou a zero mesmo.
Viver tem dessas coisas: de vez em quando se fica a zero. E tudo isso é por enquanto. Enquanto se vive.
Hoje me telefonou uma moça chorando, dizendo que seu pai morrera. É assim: sem mais nem menos.
Um dos meus filhos está fora do Brasil, o outro veio almoçar comigo. A carne estava tão dura que mal se podia mastigar. Mas bebemos um vinho rosé gelado. E conversamos. Eu tinha pedido para ele não sucumbir à imposição do comércio que explora o dia da mães. Ele fez o que pedi: não me deu nada. Ou melhor, me deu tudo: a sua presença.
Trabalhei o dia inteiro, são dez para as seis. o telefone não toca. Estou sozinha. Sozinha no mundo e no espaço. E quando telefono,o telefone chama e ninguém atende. Ou dizem: está dormindo.
A questão é saber aguentar. Pois a coisa é assim mesmo. Às vezes não e tem nada a fazer e então se faz pipi.
Mas se Deus nos fez assim, que assim sejamos. De mãos abanando. Sem assunto.
Sexta-feira de noite fui a uma festa, eu nem sabia que era o aniversário do meu amigo, sua mulher não me dissera.
Tinha muita gente. Notei que muitas pessoas se sentiam pouco à vontade.
Que faço? telefono a mim mesma? Vai dar um triste sinal de ocupado, eu sei, uma vez já liguei distraída para o meu próprio número. Como acordo quem está dormindo? como chamo quem eu quero chamar? o que fazer? Nada; porque é domingo e até Deus descansou. Mas eu trabalhei sozinha o dia inteiro.
Mas agora quem estava dormindo já acordou e vem em ver às oito horas. São seis e cinco.
Estamos no chamado "veranico de maio": muito calor. Meus dedos doem de tanto eu bater à máquina. Com a ponta dos dedos não e brinca. É pela ponta dos dedos que se recebem os fluidos.
Eu devia ter me oferecido para ir ao enterro do pai da moça? A morte seria hoje demais para mim. Já sei o que vou fazer: vou comer. Depois eu volto. Fui à cozinha, a cozinheira por acaso não está de folga e vai esquentar comida para mim. Minha cozinheira é enorme de gorda: pesa noventa quilos. Noventa quilos de insegurança, noventa quilos de medo. Tenho vontade de beijar seu rosto preto e liso mas ela não entenderia. Voltei à máquina enquanto ela esquentava a comida. Descobri que estou morrendo de fome. Mal posso esperar que ela me chame.
Ah, já sei o que vou fazer: vou mudar de roupa. Depois eu como, e depois volto à máquina. Até já.
Já comi. Estava ótimo. Tomei um pouco de rosé. Agora vou tomar café. E refrigerar a sala: no Brasil ar refrigerado não é um luxo, é uma necessidade. Sobretudo para pessoa que, como eu, sofre demais com o calor. São seis e meia. Liguei meu rádio de pilha. Para o Ministério da Educação. Mas que música triste! não é preciso ser triste para ser bem-educado. Vou convidar Chico Buarque, Tom Jobim e Caetano Veloso e que cada um traga a sua viola. Quero a alegria, a melancolia me mata aos poucos.
Quando a gente começa se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas "por enquanto". São vinte para as sete. E para que é que são vinte para as sete?
Nesse intervalo dei um telefonema e, para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de "para o meu gáudio". É muito esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem lembro se li alguma vez.
Estou com saudade. Saudade de meus filhos, sim, carne da minha carne. Carne fraca e eu não li todos os livros. La chair est triste.
Mas a gente fuma e melhora logo. São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É muito fácil. É uma questão do relógio parar. faltam trê minutos para as sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver televisão sozinha.
Mas finalmente resolvi e vou ligar a televisão. A gente morre às vezes."
(LISPECTOS, Clarice.A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 - pp. 45-47).

Este conto transcrito na íntegra se chama Por enquanto. E nem parece conto, parece um diário, um relato, uma página de blog.
Facilmente a gente se ilude com a auto-referencialidade, com as correspondências supostas entre narradora e autora...e que diferença faz, nesse caso? não estamos fazendo análise estrutural mesmo!
Interessante é que muitos de meus amigos se identificam com essa narrativa, com o seu conteúdo, com suas filosofias implícitas e explícitas... e eu, que já fiz xixi (ôpa, pipi!) e estou escrevendo, também me identifico em alguns aspectos com a narradora.
E eu tinha que me distrair da densidade cansativa de estar lendo e escrevendo para a Qualificação - aprendi isso a duras penas, apesar de pequenos atos de teimosia: a gente escreve enquanto lê, se não a idéia foge.
Sei que isso desnorteia toda a noção de metodologia, mas o certo é esse mesmo: ir lendo e ir escrevendo, para não se perder.
Quando leio este conto lembro das pressões de minhas amigas para que eu tenha um celular com dois chips - ora, mas eu nem teria com quem falar tanto, nem vejo sentido em me pendurar no telefone sempre, se bem que o faça de vez em quando.
Para quê eu iria querer dois celulares, ou dois chips, sei lá? estou perguntando "para quê"!.
Gosto de ficar em paz.
Há coisas tão inúteis para a minha vida! por isso eu nunca terei um microonda, nem máquina de lavar roupas, nem um celular com dois chips...para quê?
E para que o telefone não se torne um instrumento de aborrecimentos, desligo quando vou dormir, desligo para namorar, desligo para trabalhar e para estudar, pelo menos, "por enquanto".

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