Louquética

Incontinência verbal

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Lições de ignorância


Como a maioria de nós já sabe, toda PUC, isto é, Pontifícia Universidade Católica, como o nome sugere, tem a ver com a autoridade do Pontífice, o papa. Ao papa cabe a escolha de seus reitores.
As demais universidades chamadas Católicas pertencem à Igreja - é uma mescla com a administração particular, mas, claro, assentada na autoridade clerical.
Esses dados confirmam o quanto a Igreja, ao longo dos tempos, concentrou poder; e poder sob a forma do saber. Se alguns tratam disso como sendo uma exclusividade da Idade Média, ouso discordar, observando essa mesma prática antes e depois de passado o período medieval.
Certo é que as católicas formam a base do sistema particular de ensino superior: são das poucas a terem autorização para doutorados particulares, por exemplo e, queiram ou não, as PUC são entidades sérias, de respaldada produção científica e com amplo reconhecimento acerca de sua competência. Tanto assim que quase nem lembramos que elas são universidades particulares - as primeiras e durante muito tempo as únicas, porque nelas o fato de haver investimento em dinheiro, por parte dos alunos, não significou a mesma mercancia que rege, hoje em dia, o sistema particular do ensino superior, que se sustenta em métodos duvidosos de aprovação, de manutenção e de formação profissional, de modo a corresponder ao que em tempos dos nossos pais era o tal PPP (papai pagou, passou!).
Tenho amigos cursando um doutorado inter-institucional com uma certa PUC. O que me afligiu foi entrever o lado conservador de alguns profissionais da instituição, daqueles tipos para os quais os esterótipos valem tudo, e os pré-conceitos são uma verdade inabalável.
Assim, tal como um ignóbil professor responsável pelo curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia, diante dos baixos conceitos obtidos pelos alunos do curso em uma avaliação do MEC, declarou que os baianos eram incapazes intelectualmente, tal como o berimbau, "instrumento de uma corda só", o referido professor da PUC veio ministrar um módulo do doutorado na Bahia e, de antemão, subestimou seus alunos.
Não foi mera subestima, foi o total desconhecimento sobre seu público, lançando perguntas absurdas em classe, do tipo : "Você já ouviram falar em Michel Foucault? em Derrida? em Deleuze?", desdobrado em: "Algum de vocês já foi a algum congresso?".
Muito me admira o sangue frio dos alunos dele.
Devo dizer que estes alunos são TODOS professores de universidade pública baiana.
Imagine que o sujeito acha que a produção teórica não chega à Bahia e que ninguém aqui vai a congressos.
Perdeu feio o pobre ignorante: Vamos a congresso, fazemos congresso, publicamos em congressos e, pior que tudo, fazemos, frequentamos e publicamos em eventos internacionais.
Pobrezinho: não deve nem saber o que é a Plataforma Lattes, porque se soubesse, teria o cuidado de examinar o perfil de seus alunos.
Esse etnocentrismo todo e nenhum dos alunos lá teve a coragem escancarar a situação.
Pensei, porém, que talvez ele levasse consigo o lado conservador de sua instituição de ensino.
Talvez seja comum que alguém do Sul, no caso dele, Rio Grande do Sul, pense que na Bahia só há ignorantes, que todo mundo é cantor de axé, que todo mundo acha que o hino do Brasil é "Vou não, quero não, posso não, minha mulher não deixa, não", que, por sinal, é música pernambucana...
O problema é que ele não está errado sozinho.
Ao ouvir o relato dos meus amigos sobre o tal professor, pensei no exercício nosso de cada dia, para tentar fragmentar os preconceitos de nossa comunidade e de nossos alunos, isso feito a partir de seminários, de eventos.
A Semana de Letras que tematizou questões GLBTT ajudou a que alguns assumissem seus desejos, mas não que saíssem do armário.
Certos alunos não compareceram, com medo de serem interpretados como gays. Mas levamos a discussão à frente e valeram a pena os tímidos resultados sociais obtidos.
Todo santo dia é uma luta para mostrar que negro, que homossexual, que adeptos de expressões religiosas de matrizes africanas são gente, seres humanos como quaisquer outros. No entanto, há muita resistência.
É uma luta mostrar que mulher é gente, que tem direitos, que tem sexualidade, que tem vida própria.
É uma luta mostrar que Deus fez o homem e fez a mulher e a diversidade veio em seguida, pois que todo homossexual é gente na amplitude do termo, não são seres sem alma e sem princípios que podem ser agredidos e mortos como um animal qualquer.
Em tempos assim, em que tudo se discute, em que usamos o pensamento acadêmico para diminuir preconceitos e para entender os fenômenos sociais, ainda encontramos o que encontramos...oxalá na consciência de um pobre coitado que pensa que é superior, que nunca deve ter lido A invenção do Nordeste,que tem essa estreiteza de raciocínio e nem se dá ao trabalho de agir com respeito frente àqueles que ele julga inferiores e incapacitados!
Penso na questão com ódio e com piedade dele, mas não concebo que uma classe sofra tanta discriminação e não escancare, não ponha a limpo o caso.
Não foi só ele quem agiu desta maneira, pelo que eu soube: os demais, mui respeitosamente,se mostraram surpresos com a capacidade de leitura e com a qualidade intelectual dos doutorandos desta mesma turma.
Nenhum destes meus últimos ficantes paulistanos, seja de que curso for, nenhum deles escapou dos deslizes de linguagem. E olha que eu tenho um assumido preconceito linguístico! então, o sotaque ABC paulista sempre veio acompanhado de problemas de flexão verbal, num " mal falar" que vai de " nós vai", passa por "dois pastel" e chega a picos absurdos de assassinato verbo-nominal que nem dá para expressar. Esses meninos são estudantes ou formados em Direito, em Educação Física, em Engenharia da Computação...
Acredito que o professor lá dos meus amigos nunca tenha se dado conta dessas coisas, da diversidade linguística, da heterogeneidade do país, da produção intelectual baiana...e aí veio a esta terra, tomar uns sustos - fosse comigo, ele iria tomar uns sustos e umas porradas, tchê!porque para tudo aquilo que o diálogo não resolve há sempre uma outra solução mais potente - não levem a sério: é que diante da violência simbólica que ele cometeu, só resta revidar.

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