Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Quando não somos quem fomos


Quando eu penso em Ditadura, duas imagens me vêm de imediato: a das madres e abuelas da Praça de Maio, que nunca traduzo por mãe e avós da Praça maio,pelo menos mentalmente; e a voz de Zé Ramalho cantando que "Nas torturas toda carne se trai".
O certo é que até hoje o tema é instigante para mim, do ponto de vista historiográfico.
A Ditadura argentina e seu governo populista (Perón) é deveras paritária com a Ditadura brasileira e seu governo populista (Getúlio Vargas)...apenas não temos grande noção do que seja estar na Ibero-América, ignoramos a história.
Mas há um lado paralelo pessoal: acho que é porque penso nas várias torturas que já me fizeram, penso naquelas a que me submeti, por fraqueza, por nem perceber que eu concordava com a tortura a mim imputada da mesma forma como um grande pecador impinge um ritual de auto-flagelação, descontando os débitos espirituais e morais pelos atos cometidos.
A cabeça moralista é assim: justifica o mal do outro a partir de algo nascente ou presente em si mesmo, trocando de lugar com o agressor, instituindo um silencioso: "Eu mereço!".
Dessas coisas eu posso falar porque já passaram.
De vez em quando a gente olha as fotografias internas do passado e quase não se reconhece. E é claro que nós nos perguntamos: "Por que eu era assim?" e vem essa resposta interior e a velha confirmação de que só fazem à gente aquilo que permitimos que seja feito - aqui em referência à violência simbólica, óbvio.
Agora penso nisso com coragem - e como eu era muito covarde! não me reconheço na pessoa que fui.
Eu tinha medo de avião - ora, me Deus, tinha medo sem nunca ter voado!
Eu tive medo de tudo que eu desejei - era medo de ter e perder, era um medo desgraçado da vida, e uma medincância absurda pelo amor do Outro...sim, todo mundo quer ser amado, mas se o amor não é voluntário, é negociata, é moeda sádica em mãos manipuladoras de amigos, parentes e namorados, sinto muito, não é amor!e nem se canse para chorar pelo que você não tem. Você não tem.
A auto-confiança, essa edificação complicada e cara, quando pronta, posso dizer como diria o mais canastrão dos livros de auto-ajuda,faz você andar com suas próprias pernas, te dá uma auto-suficiência e uma segurança que ajuda a atrair coisas, pessoas e situações reais.
Não quero dizer que essa referência às coisas reais implique num tom seco de encarar a vida, sem imaginação,sem fantasia, sem piedade e com cem por cento de senso prático. Não é isso: é que a gente passa a saber romper com os ditadores e com as torturas.
Toda sorte de tortura simbólica já me abateu e e me imobilizou.
Andei, sim, estranhando, a rapidez com que corto um laço, especialmente com os homens, mas o caso é bem mais simples do que parece.
Quando a gente aceita o rótulo da carência, acaba aceitando bem menos do que merece, afinal, quem supostamente nos ama está fazendo um favor...assim costumamos pensar.
É bom lembrar que as madres e abuelas da praça de maio são mulheres. Mulheres entendem de dores e de lutas e, por isso, essas mães e avós reclamam respostas sobre seus desaparecidos ( que todos nós sabemos mortos)... e o tempo passa. Nem por isso a luta cessa, até que o Estado assuma sua violencia e devolva as informações e os corpos de filhos, irmãos, maridos, esposas, irmãs, amigos e amigas e a infinidade toda de gente que desapareceu nas mãos do Estado.
O tempo passa.
Não devemos brigar com o tempo, mas tirar proveito dele, alimentar a Memória, nunca permitir o esquecimento do que é importante, nunca permitir que o tempo apague as marcas importantes: olhe e aprenda com aquelas mulheres de várias gerações.
Nunca se esqueça: "Nas torturas, toda carne se trai". É preciso ver a transmigração da ofensa em dor, da humilhação em feridas, dos desprezos e das subestimas sofridas em lacerações e hematomas. É preciso lembrar de cada tortura sofrida e aprender a se defender, mas aprender a se perdoar, a dar um auto-indulto para os momentos em que nossas carnes foram traidoras e deram de mão beijada os nosso segredos, porque a dor era grande e vendemos bem barato o que não tinha preço.
Devo assumir, também, que dá um prazer incomensurável saber dizer não, jogar fora o que não me interessa, apostar alto, determinar meu preço numa dada circunstância e não aceitar barganha - ora, quem diria!

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