Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 4 de março de 2011

E eu vou!


Eu gosto de carnaval e não há a menor novidade nisto. Apenas há a satisfação em dizer, principalmente porque eu não vejo graça no Reveillon, por exemplo, ou porque me aproveito das desculpas esfarrapadas,, de que eu tenho rinite para fugir do São João. Da festa junina, eu gosto é da comida, mas fico fingindo coisas outras para me entocar em casa.
Eu só saio no São João fora das datas comemorativas específicas, como fiz no ano passado, para ir a Muritiba, mas, para comemorar só há duas datas: meu aniversário e o carnaval.
Talvez isso seja uma revanche, porque sempre trabalhei no carnaval no período em que fui militar. Às vezes por opção, para descolar uma grana extra; às vezes à minha revelia, por Ordem. E se ficava em Feira, trabalhava do mesmo jeito, porque o efetivo diminui para que o povo seja mandado para reforçar a tropa em Salvador.
Mas é mentira: eu gosto porque gosto.
Vejam: eu nem consumo axé. Mas adoro a licença-licenciosa de sair na rua de short, de usar fantasias, de ver pessoas que não têm que ter muito receio em se aproximar e propor uma aula de canto - canto de muro, canto de camarote, canto de barraquinha.
Como todas as outras pessoas, eu temo a violência. Por isso, não sou de ficar em lugares em que seja difícil escapar, correr.
Parafraseando Iderval Miranda, eu odeio "essa vontade de ser como os outros" no reveillon, no natal, no São João, mas no carnaval eu sou exatamente como os outros, eu me esbagaço, me entrego, participo....e faço xixi atrás da barraquinha ou atrás do carro, se o bicho pegar...se fosse no Rio eu estaria frita!Gente, perdoe-me!eu sei que estou errada e também odeio aquele cheiro de amoníaco que fica na rua no dia seguinte - Eau de Mijòu, como dizem os foliões.
No carnaval eu não me importo com as músicas, mas também não sei coreografia nenhuma. Acho que odeio isso de "sai do chão!", "mãozinhas para o alto", "Todo mundo para o lado direito"...blablablá! putz, odeio ser comandada e odeio movimentos engessados, determinando que só há um jeito certo para dançar. Isso é irritante, mas é coisa dos enlatados da indústria cultural.
Os de minha geração são fissurados pela música baiana de carnaval dos anos 1980, que tinha Missinho no Chiclete com Banana, dando outro tom, outra letra, não era essa porcaria vazia de hoje, tinha letras narrativas, falando da cultura africana com a banda Reflexu's e com Margareth Menezes, que puxa o bloco que eu saio com os chegados na segunda de carnaval, o Afropop brasileiro. Tinha era coisa, viu? Concordo com Henrique, que diz que ouvir Gerônimo cantar: "Eu sou negão, meu coração é a Liberdade" é uma parada muito forte. E eu coloquei a Liberdade em maiúscula para lembrar do bairro de Salvador ( o de maior população negra na América Latina) e porque enquanto eu tomava banho e cantava essa música hoje, entrecruzei com a letra de Caetano Veloso, de Milagres do povo, quando ele diz: "Quem é ateu e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem deus não cessam de brotar,nem cansam de esperar;
E o coração, que é soberano e que é senhor, não cabe na escravidão..."

E essas passagens acabam explicando a outra letra, da outra música que nem é dele, porque o coração é soberano, é senhor e não se submete à escravidão: ele é a liberdade.
Por mais que o regime escravista tenha sido reificante para os meus antepassados, para o povo negro, nosso povo não se tornou uma mercadoria-coisa, sem coração, sem sentimentos, sem anseios, sem forças para lutar.
A segunda estrofe da música só reforça esse enlace entre as músicas, porque diz: "E o povo negro entendeu que um grande vencedor se ergue além da dor,
Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil
Foi o negro que viu
A crueldade bem de frente
E ainda construiu milagres de fé no Extremo Ocidente.
Ojuobá ia lá e via, OjuoBahia.

É suprema a idéia de se erguer além da dor e fantástica a alquimia de transformar dor em arte, em estratégias de sobrevivência.
Por tudo isso é tão inaceitável o preconceito étnico-racial, porque ele significa que as pessoas defendem o agressor, o escravista, o branco que se pensou civilizado e se achou no direito de escravizar, violentar e matar ao negro e ao índio, ao diferente.
Isso se reflete em muitos setores da vida cotidiana e o carnaval escancara um pouco mais, porque os negros estão nas cordas dos blocos (Cordeiro de Deus que tirei o pecado do mundo, tende piedade de nós!), estão catando latinhas, estão no subemprego, nos camarotes a limpar banheiros, na rua, no alvo da polícia.
O carnaval pode ser a festa coletiva de exaltação da vulgaridade e da futilidade, o espetáculo das carnes e da indecência, o palco para crente paranóicos lhe oferecerem a vida Eterna e o Paraíso, a oportunidade dos homossexuais se exibirem em beijos com seus pares, a aglomeração que põem em suspenso a normalidade,mas pode ser o que você fizer da festa...E eu vou!
Com todas as contradições, defeitos, horrores, perigos e loucuras, eu adoro o carnaval!

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