Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 9 de março de 2011

Para todas, versão I


Ontem foi o Dia Internacional da Mulher, data que eu nunca deixo passar em branco em minhas postagens, exceto por motivos de força maior que, como agora, determinam o atraso na postagem.
Gostaria de lembrar esta data a partir daquela história mitológica tão apreciada por nós, quando graduandos, porque é uma narrativa fascinante e atual, apesar de secular.
Recorro a um romance que eu também adoro: Atire em Sofia, de Sônia Coutinho (Rocco:1989, p.13):
Eu, lilith. A primeira companheira de Adão, a mulher suja de sangue e saliva que lhe perguntou:"Por que devo me deitar embaixo de você? Porque devo me abrir debaixo do seu corpo? Por que ser dominada por você? Mas eu também fui feita de pó e por isso sou sua igual"
Voei então para muito longe, em direção às margens do Mar Vermelho, e Jeová decretou: "O desejo de uma mulher é para seu marido.Volte para ele". Ao que eu respondi: "Não quero mais nada com o meu marido."
Jeová mandou à minha procura uma formação de anjos, que me alcançaram nas charnecas desertas do Mar Arábico, cujas águas atraem os demônios. Estava cercada de criaturas das trevas, quando chegaram os anjos enviados por Jeová. Disse a eles: "Não vou, este é meu lugar". E fiquei e conquistei minha liberdade e minha solidão.
A narrativa se torna ainda mais fascinante porque Lilith é exclu[ída da bíblia, mas, não só a sua história permanece como também a sua sucessora, Eva,confirmará a predisposição da mulher a não aceitar passivamente o comando e o poder de mando masculino - apesar de todos os preços pagos.
O que esperar para as mulheres se a história da mulheres foi escrita pelos homens? o que esperar que as narrativas patriarcais digam sobre "ser sábia e ser tola", se ela serve a quem comanda?"O macho adulto, branco, sempre no comando!", nos diz Caetano Veloso.
Voltemos a Sônia Coutinho, já no final do romance, nas páginas 177-178, de Atire em Sofia:
Eu, Lilith. O ssumérios me representaram num baixo-relevo,severa e poderosa, com serpentes em vez de cabelos, duas asas e, no lugar dos pés, garras de abutre.
Já os gregos me chamavam de Hécate e situaram meu reino no Tártaro, na confluência de rios malditos: Estige, Aqueronte, Averno, Lete. À entrada, havia um bosque de álamos brancos que balouçavam constantemente ao sabor da brisa e, mais além, o palácio ond emoravam Hades e Perséfone, a quem eu fazia companhia. Minha casa era cercada de ciprestes e dela eu partia a cada 28 dias e espalhava o pavor pela Terra, ao aparecer repentinamente precedida de Cérbero, o guardião dos infernos, que ladrava para advertir os agonizantes. Uma multidão d efantasmas fazia parte do meu cortejo.
Também fui Empusa, com cabelo e tórax de mulher, mas com nádegas de asno e, no lugar de um dos pés, um casco de cavalo. Às vezes assumia a forma de cadela ou de vaca e despertava a luxúria e o terror. Eu, a deusa das perversões secretas.
E fui Equidna, metade serpente, metade uma jovem linda que morava numa caverna imensa, no côncavo de um penhasco. Fui, ainda, Circe, rainha dos encantamentos maléficos, manipulando filtors e venenos, drogas sombrias. Alta, bela e altiva, morando numa ilha banhada por quentes mares - mas os êxtases que eu proporcionava custavam a destruição.
Sou eu, Lilith. Encarnada também nas Hápias, na Medusa. Eu, o íncubo. Quem, durante a noite, sofria de terrores, tinha delírios, quem saltava da cama apavorada e corria, era do meu ataque que estava fugindo. Cubro o corpo dos homens com meu corpo quente e dizem que meu abraço é tão furioso que sufoca. Minhas vítimas têm o maior orgasmo de suas vidas, mas depois desfalecem e entram em crises de melancolia.
um dos meus privilégios é causar a loucura.
Assim me viram os homens, porque eu era livre e solitária.

Como não é possível fugir da verdade que é o fato de que somos quem somos e somos quem dizem que nós somos, isto é, somos quem somos, mas, tragicamente, somos todas as intepretações e todas as narrativas que fazem sobre nós, então, dizer que "Assim me viram os homens" é dizer que a representação da mulher, a visão da mulher honesta, da mulher casta, sábia e pura e seus opostos sempre serão ícones manipulados nas próprias consciências femininas que repetem esses modelos de comportamento e de ideais de mulher.
Mas eu passo de Sônia Coutinho a Florbela Espanca (do compêndio Trocando Olhares), para favorecer aquela outra parte de minhas amigas - que nem sabem que são Lilith e se pensam Maria:

A MULHER II
Ó, mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosas duma imagem
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!

Paixão que faria felicidade
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!

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